São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Marta: técnicas do corpo e atitudes da alma

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Antigo é o exame das "técnicas do corpo" que, nas várias sociedades, grupos sociais ou categorias de sexo, idade e trabalho, capacitam as pessoas a se servirem de si como um instrumento. Desde as reflexões sobre "ethos", "hexis" ou "habitus", são focalizadas a determinação física, tradicional e simbólica dessa "segunda natureza" e seu significado psicológico, social e político. M. Mauss e E. Canetti são marcos modernos dessa temática.
Educação e treinamento fundamentam as artes de utilizar o corpo, seja por via do cultivo aberto, como na etiqueta, do automatismo forçado, como nos militares, ou da imitação de atitudes e atos prestigiosos. Trata-se de formas tradicionalmente eficazes (Mauss), compreendendo tanto processos ritualizados como atividades simbólicas da consciência: elas integram e promovem o sucesso no campo social.
Política é um grande palco para os movimentos do corpo, controlados pelo publicitário que os avalia em face do rendimento eleitoral, como nas montagens que visam otimizar máquinas. Produziu-se o mal amanhado Lula como personagem impecável, mas esse adestramento não é infalível, deixando lapsos por onde brotam usos velhos e resistentes, transgressores do "decorum", como a malograda polidez de brindar em país islâmico.


Indiscreta, a voz da candidata, como a dos reis de França, só autoriza o seu "bon plaisir"


Nos antípodas a candidata Marta, que recorre, ademais, à sua anterior experiência televisiva profissional. Veja-se a sua participação no programa "Gazeta em Notícias". A postura corrente nos convidados é dirigir-se ao entrevistador, e não às câmeras. Ao contrário, Marta responde para a máquina. Podemos atribuir vários pesos ao olhar. Se fixá-lo pode ser rude, furtá-lo ao interlocutor é impolido, sobretudo quando fins eleitorais o orientam: seu destinatário é a audiência que visa atingir, desprezando o diálogo e a jornalista.
Essa instrumentalização do corpo denota automatismo e autocracia que fraturam o adestramento partidário e promocional. Além do descaso pelo debate, ignorando quem lhe dirigia a palavra, aquele olhar físico alia-se a outras atitudes mentais da prefeita. Marta diz provir de família rica. Isso, como diz, pode beneficiar "os que precisam". Em vez de afanar-se para subir na vida (como seus "companheiros", na maioria ex-sindicalistas instalados no governo ou firmas estatais), ela visa -em condutas talvez legadas pela família, escola, convicções políticas e religiosas altruístas- a programas magnânimos, mas sem maior alcance. A prática humanitária é louvável; contudo, passam os CEUs e mantém-se a ortodoxia do Banco Central.
A posição socioeconômica favorável à benemerência é também solo do poder. A fala dominante possui um timbre inconfundível. A voz da candidata, qual a da loira e rica Daisy, "is full of money" ("The Great Gatsby"). Como a personagem, Marta coloca-se no papel de intermediária das riquezas, de sua família para os pobres e do governo federal para o município. Só o dueto Marta-Lula traria verbas para São Paulo. Aí, ela assume a mais estereotipada figura da mulher na sociedade capitalista -intermediária dos dinheiros, momento de sua circulação- e, de lambujem, clama contra os preconceitos antifemininos.
Na mesma entrevista de Marta desenham-se esquemas unindo atitudes corporais e anímicas. Renunciando a maldizer os adversários, à pergunta sobre como julgava um de seus opositores, a resposta veio com modulações da voz -do esganiçado ao grave- e amplos gestos de braços e mãos, desqualificando o assunto: "Não quero falar de fulano, quero falar de mim, do que fiz". Indiscreta, a voz da candidata, como a dos reis de França, só autoriza o seu "bon plaisir" e assume como lema "São Paulo "c'est moi'". Depois, o dilúvio...
Seja de modo consciente, explorando a sedução, seja reproduzindo comportamentos aprendidos e sedimentados pela moça faceira, a mola do hábito impulsiona gestos e atos.
A adolescência é decisiva na educação corporal; tempo de gerar destrezas e movimentos que imitam e reforçam os ares e poses bem-sucedidos, garantidores de prestígio: a música e a dança mimetizadas por Marta, no contexto de sua vida adulta e pública, são próprias a uma adolescente caprichosa. Fala-se de sua arrogância e autoritarismo, conceitos ligados à sociabilidade e à política, mas a atitude de Marta foge a essas categorias, entrando na de moça acostumada a ter o que deseja. Sua fala denota essa pretensão: "Eu quero, eu posso, eu sei...". Diante das câmeras, um zoom do rosto gongórico busca encantamento...
Marta ataca os misóginos, mas privilegia homens nos postos elevados. Invectiva políticos machistas, mas busca esteio em Lula, que faltou ao respeito devido às mulheres ao afirmar, em comício, que, desejando um filho, engravidou a "galega" no dia do casamento. "Pernambucano não deixa por menos." Perto dessa ordem que joga a mulher ao papel biológico, referir-se a "dona Marta" chega a ser respeitoso.
Marta diz-se orgulhosa de ser mulher, mas abriga-se nessa figura retrógrada, tomando-a por arrimo e fonte de intimidação contra o eleitorado paulistano.

Maria Sylvia Carvalho Franco, professora titular do Departamento de Filosofia da Unicamp e do Departamento de Filosofia da USP, é autora de, entre outras obras, "Homens Livres e Ordem Escravocrata" (Unesp editora).


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