São Paulo, quarta-feira, 27 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O alarmismo e a eleição paulistana

FÁBIO KERCHE

Há pouco tempo, um parlamentar de oposição insinuou que um dirigente do PT iria tirar proveito da eventual aprovação das PPP. O partido reagiu pedindo que o senador confirmasse a acusação na Justiça. A resposta do político foi que a posição do PT era stalinista. Não me parecia do estilo de Stálin questionar adversários através de um Poder Judiciário independente. É claro que isso faz parte de uma estratégia para afirmar que o governo e o PT são autoritários. Nesse mesmo sentido, o artigo de Boris Fausto "As vassouras e a eleição paulistana" (Folha, pág. A3, 14/10) afirma que uma vitória de Marta Suplicy poderia reforçar um governo marcado por "tendências autoritárias". Fausto elenca pontos que comprovariam esse movimento e que justificariam o voto em José Serra. Embora o artigo seja mais elegante do que a frase do senador, reparos devem ser feitos.
Um dos pontos para comprovar sua tese seria "a ampliação do número de cargos de confiança e seu provimento por critérios fundamentalmente partidários" realizado pelo governo federal. Na verdade, os números não comprovam isso. Em junho de 2003, dos cargos passíveis de alteração, apenas 36,8% foram substituídos. Em balanço mais recente, o Planejamento aponta que, dos servidores com cargos de confiança em abril de 2004, 67,5% são funcionários públicos de carreira e, portanto, apenas deslocados de seus órgãos de origem. Em outras palavras, o governo não substituiu os servidores em um ritmo que ameaçasse o funcionamento da máquina ou que incorporasse de forma majoritária pessoas estranhas ao serviço público.


A democracia não corre risco, independentemente do resultado da eleição em São Paulo


Um outro exemplo do suposto autoritarismo seriam "as investidas contra a competência investigatória do Ministério Público". Ora, a decisão sobre a competência do Ministério Público de realizar investigações cabe ao STF, e não ao governo. Entretanto é legítimo que o governo debata o assunto, como é democrático que os membros do MP também o façam. Não há um modelo único para as democracias em relação a esse ator. Além do mais, se qualquer debate relativo à instituição pode ser caracterizado como autoritário, o que dizer da posição do PSDB na votação da "Lei da Mordaça" em 2000? Dos 93 parlamentares tucanos presentes, 79 votaram "sim" ao projeto. Já os 57 parlamentares do PT votaram contrariamente a limites para os promotores.
Fausto também exemplifica como traços autoritários a "introdução da dialética amigo-inimigo (...) ao gosto do peronismo, no passado, e do chavismo, no presente". Discordarei também dessa afirmação. O respeito às instituições está presente neste governo e não há, na biografia do presidente, nenhum traço golpista ou desrespeitoso às regras do jogo político-partidário. Sua trajetória é tão identificada com o partido que é impossível caracterizar alguma ligação direta dele com a população ou com os políticos sem essa intermediação -o que não caracteriza um populista, mas um democrata. Além disso, nunca um presidente recebeu tantas vezes representantes da sociedade civil, incluindo aqueles que já se posicionaram contrariamente ao governo e ao próprio Lula.
O número de medidas provisórias, que poderia caracterizar para alguns um desprezo pelo Legislativo, com as novas regras da PEC 32 de 2001 têm uma média menor do que a do governo anterior (6,8 por mês com FHC e, até 30/9/04, 5,47 neste governo). Tampouco houve qualquer imposição de modelos de agência de audiovisual ou de conselho de jornalistas, como afirma o professor. Governos autoritários não levam propostas ao Congresso ou debatem com os atores interessados.
A vitória de Marta não representaria a "hegemonia política na condução do país". Essa frase é de pouco sentido quando se observa o amplo leque de partidos que conquistaram prefeituras ou mesmo que dirigem os Estados ou participam dos legislativos. Além disso, o PT teve um crescimento no número de prefeituras, segundo Wanderley Guilherme dos Santos, de 140% em relação às cidades que administrava. O PSDB, quando das primeiras eleições municipais no governo FHC, em 1996, teve um incremento de 200%. E não me lembro de nenhum intelectual assinar artigos em que via perigo para a democracia naquela época, mesmo quando um ministro explicitava que o projeto do PSDB era de 20 anos no poder.
O Brasil vive um período rico de sua história. Os partidos funcionam livremente, a liberdade de imprensa não sofre limites, eleições garantem alternância de poder. A democracia não corre risco, independentemente do resultado da eleição em São Paulo. Análises que sustentam perigos stalinistas ou autoritários não captam o saudável momento em que projetos políticos se confrontam em clima de liberdade. Deixemos os eleitores paulistanos escolherem o que acreditam ser o melhor para São Paulo, sem medos desnecessários ou alarmismos descolados da realidade.

Fábio Kerche, 33, doutor em ciência política pela USP e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ), é secretário-adjunto da Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da República.


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