São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A legalização do aborto ajudaria a combater a criminalidade?

NÃO

Os perigos da simplicidade

GEORGE MARTINE e SONIA CORRÊA

A GRAVIDEZ indesejada, a pobreza e a violência são questões importantes e, sem dúvida, todas elas se encontram presentes no cenário das favelas cariocas. Mas essa convivência não significa causalidade. Apesar das boas intenções, as declarações do governador Sérgio Cabral a respeito da legalização do aborto como forma de conter a violência refletem uma lógica simplista: pobre tem filho demais e isso gera mais pobreza, que, por sua vez, gera violência.
A singeleza de tais raciocínios seduz a opinião pública, escamoteia as principais causas de problemas sociais complexos como a violência e faz dos pobres, principalmente as mulheres, seus bodes expiatórios.
Em vez de recorrer apenas ao senso comum, porém, o governador lança mão de um capítulo do livro "Freakonomics", de Steven Levitt e Stephen J. Dubner, no qual se afirma que a redução da violência nos Estados Unidos, no final do século passado, pode ser atribuída, em grande parte, à legalização do aborto. Contudo, tanto a afirmação sobre a alta fecundidade nas favelas como a tese de que a legalização do aborto reduz a violência são contestáveis.
Na realidade, a população das favelas cariocas apresenta hoje níveis baixos de fecundidade. De acordo com estudos da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, as mulheres que residem nas favelas têm 2,6 filhos por mulher, em média, comparado com 1,7 para o resto da população carioca. As mulheres com mais de nove anos de estudo, sejam elas faveladas ou não, têm níveis de fecundidade comparáveis aos da Europa -1,6 por mulher. Mulheres com níveis de renda per capita acima de um salário mínimo também apresentam níveis de fecundidade abaixo da reposição.
Portanto, para poder exercer seus direitos reprodutivos, as faveladas precisam de melhor renda e educação. Além disso, não se deve fazer ilação direta entre número de filhos e violência; nesse caso, o Maranhão, onde a média de filhos atinge 3,2 por mulher, seria campeão da violência.
A famosa tese de que a legalização do aborto reduz a criminalidade é igualmente atraente, mas peca também pela sobre-simplificação.
O estudo, escrito por Levitt e John Donahue, enfoca um período curto e negligencia outros determinantes da criminalidade norte-americana, tais como os efeitos diretos da ascensão e da queda da epidemia do crack durante o período estudado sobre o aumento e a posterior retração da criminalidade. Também usa categorias etárias pouco desagregadas e se baseia em números absolutos de detenções, e não em médias per capita.
É importante ressaltar também que a intenção dos autores era analisar as possíveis conseqüências da relação entre a legalização do aborto e a criminalidade, e não oferecer bases normativas. Inclusive, o próprio Donahue já afirmou que um dos achados fundamentais da pesquisa é que, ao poderem decidir sobre suas vidas reprodutivas, as mulheres tomam decisões que têm efeitos positivos sobre seus filhos e a sociedade.
Em suma, é lamentável que problemas sociais complexos continuem sendo mesclados nesse afã pela busca de soluções fáceis. O governador Sérgio Cabral tem razão quando considera o aborto um grave problema de saúde pública e se posiciona a favor da descriminalização, conforme as decisões adotadas nas conferências internacionais do Cairo (1994) e de Beijing (1996), que definiram os direitos sexuais e reprodutivos.
Entretanto, é preciso sublinhar que, historicamente, as políticas de controle da fecundidade que fizeram recurso ao aborto de maneira instrumental, seja por motivações eugênicas, seja como caminho para solucionar problemas sociais complexos, não apenas foram condenadas como abuso dos direitos mas também não tiveram os resultados esperados.


GEORGE MARTINE, 68, mestre em sociologia pela Universidade Fordham e doutor em demografia e ecologia pela Universidade Brown, é consultor e presidente da Abep (Associação Brasileira de Estudos Populacionais).

SÔNIA CORRÊA, 58, antropóloga, é pesquisadora associada da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução.

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