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TENDÊNCIAS/DEBATES
A legalização do aborto ajudaria a combater a criminalidade?
NÃO
Os perigos da simplicidade
GEORGE MARTINE e SONIA CORRÊA
A GRAVIDEZ indesejada, a pobreza e a violência são questões importantes e, sem dúvida, todas elas se encontram presentes
no cenário das favelas cariocas. Mas
essa convivência não significa causalidade. Apesar das boas intenções, as
declarações do governador Sérgio Cabral a respeito da legalização do aborto como forma de conter a violência
refletem uma lógica simplista: pobre
tem filho demais e isso gera mais pobreza, que, por sua vez, gera violência.
A singeleza de tais raciocínios seduz a opinião pública, escamoteia as
principais causas de problemas sociais complexos como a violência e faz
dos pobres, principalmente as mulheres, seus bodes expiatórios.
Em vez de recorrer apenas ao senso
comum, porém, o governador lança
mão de um capítulo do livro "Freakonomics", de Steven Levitt e Stephen
J. Dubner, no qual se afirma que a redução da violência nos Estados Unidos, no final do século passado, pode
ser atribuída, em grande parte, à legalização do aborto. Contudo, tanto a
afirmação sobre a alta fecundidade
nas favelas como a tese de que a legalização do aborto reduz a violência são
contestáveis.
Na realidade, a população das favelas cariocas apresenta hoje níveis baixos de fecundidade. De acordo com
estudos da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, as mulheres que residem nas favelas têm 2,6 filhos por mulher, em média, comparado com 1,7 para o resto da população
carioca. As mulheres com mais de nove anos de estudo, sejam elas faveladas ou não, têm níveis de fecundidade
comparáveis aos da Europa -1,6 por
mulher. Mulheres com níveis de renda per capita acima de um salário mínimo também apresentam níveis de
fecundidade abaixo da reposição.
Portanto, para poder exercer seus
direitos reprodutivos, as faveladas
precisam de melhor renda e educação. Além disso, não se deve fazer ilação direta entre número de filhos e
violência; nesse caso, o Maranhão,
onde a média de filhos atinge 3,2 por
mulher, seria campeão da violência.
A famosa tese de que a legalização
do aborto reduz a criminalidade é
igualmente atraente, mas peca também pela sobre-simplificação.
O estudo, escrito por Levitt e John
Donahue, enfoca um período curto e
negligencia outros determinantes da
criminalidade norte-americana, tais
como os efeitos diretos da ascensão e
da queda da epidemia do crack durante o período estudado sobre o aumento e a posterior retração da criminalidade. Também usa categorias etárias
pouco desagregadas e se baseia em
números absolutos de detenções, e
não em médias per capita.
É importante ressaltar também
que a intenção dos autores era analisar as possíveis conseqüências da relação entre a legalização do aborto e a
criminalidade, e não oferecer bases
normativas. Inclusive, o próprio Donahue já afirmou que um dos achados
fundamentais da pesquisa é que, ao
poderem decidir sobre suas vidas reprodutivas, as mulheres tomam decisões que têm efeitos positivos sobre
seus filhos e a sociedade.
Em suma, é lamentável que problemas sociais complexos continuem
sendo mesclados nesse afã pela busca
de soluções fáceis. O governador Sérgio Cabral tem razão quando considera o aborto um grave problema de
saúde pública e se posiciona a favor da
descriminalização, conforme as decisões adotadas nas conferências internacionais do Cairo (1994) e de Beijing
(1996), que definiram os direitos sexuais e reprodutivos.
Entretanto, é preciso sublinhar
que, historicamente, as políticas de
controle da fecundidade que fizeram
recurso ao aborto de maneira instrumental, seja por motivações eugênicas, seja como caminho para solucionar problemas sociais complexos, não
apenas foram condenadas como abuso dos direitos mas também não tiveram os resultados esperados.
GEORGE MARTINE, 68, mestre em sociologia pela Universidade Fordham e doutor em demografia e ecologia pela Universidade Brown, é consultor e presidente da Abep
(Associação Brasileira de Estudos Populacionais).
SÔNIA CORRÊA, 58, antropóloga, é pesquisadora associada da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids) e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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