São Paulo, sábado, 27 de outubro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A legalização do aborto ajudaria a combater a criminalidade?

SIM

Filhos indesejados e criminalidade

GABRIEL CHEQUER HARTUNG

OITO ANOS depois da divulgação do trabalho seminal de Steven Levitt, muito se discute sobre a validade e o uso do seu resultado. O artigo mostra que a decisão da Suprema Corte americana, que permitiu em 1973 o aborto nos 50 Estados daquele país, foi determinante para a forte redução nas taxas de criminalidade na década de 90. Segundo o estudo, metade da redução de 40% nas taxas de crimes violentos e cerca de um terço da redução de 30% nas taxas de crimes contra o patrimônio se devem à legalização do aborto.
A evidência de Levitt é bem contundente. Primeiro, mostra que a criminalidade começou a cair nos EUA exatamente 18 anos após a legalização do aborto, momento em que os bebês nascidos depois da decisão da Suprema Corte entravam na faixa etária de maior envolvimento criminal. Em seguida, mostra que, nos cinco Estados em que o aborto foi permitido três anos antes do resto do país, as taxas de criminalidade começaram a cair exatamente três anos antes. E termina mostrando que os Estados nos quais houve proporcionalmente mais abortos durante a década de 70 foram os que apresentaram redução mais acentuada da criminalidade.
A justificativa teórica para o aborto afetar a criminalidade se expressa em duas proposições: 1) a legalização do aborto reduz o nascimento de filhos indesejados; 2) filhos indesejados têm uma chance maior de se envolverem em atividades criminosas.
A primeira proposição é verdadeira por definição. A segunda proposição encontra suporte em aproximadamente 40 anos de pesquisa acadêmica. Por exemplo, Dagg (1991) mostra que filhos que nasceram porque não foi permitido pela Justiça que as mães abortassem se tornaram adolescentes com probabilidade bem superior de participar de atividades criminosas se comparados com crianças com mesmo "background" familiar, mas cujas mães não expressaram judicialmente a intenção de interromper a gestação.
Meu estudo aborda a mesma questão sob uma ótica distinta. Vejo, usando dados de São Paulo, que fatores como a proporção de filhos nascidos de mães adolescentes, nascidos de famílias monoparentais e a taxa de fecundidade são determinantes mais importantes da criminalidade 20 anos mais tarde do que fatores socioeconômicos tradicionais, como o crescimento econômico, a desigualdade e a presença da polícia.
A relação entre meu estudo e o de Levitt é que o aborto reduz a criminalidade, em grande medida, porque reduz esses fatores. Porém, o objetivo de nenhum desses trabalhos é justificar a legalização do aborto. Sua contribuição envolve apenas mostrar um de seus benefícios. Cabe à sociedade decidir, ponderando ao mesmo tempo os custos de ordem moral e normativa associados à saúde pública. Além disso, há outras formas além do aborto de atacar problemas como gravidez indesejada, gravidez adolescente e alta fecundidade.
O investimento em educação é, provavelmente, a medida mais óbvia e mais eficaz para atacar o problema.
Analisando dados do Censo 2000, percebemos que a fecundidade de mulheres sem instrução chega a ser seis vezes maior que a de mulheres com 12 anos ou mais de educação formal, pertencentes à mesma faixa de renda. Além de reduzir a fecundidade, a educação tem um impacto direto na criminalidade, uma vez que adolescentes mais educados têm menor probabilidade de se envolverem em atividades criminosas. A pré-escola, em especial, parece ser um grande redutor direto de criminalidade.
Políticas públicas que melhorem a educação reprodutiva e planejamento familiar também devem contribuir para a redução da criminalidade. Uma experiência interessante é a do Instituto Kaplan, que reduziu em 91% a ocorrência de gravidez entre adolescentes, estudantes do ensino médio, em 24 escolas da rede estadual em 14 municípios do Vale do Ribeira.
Infelizmente, esse tipo de política, mesmo que seja amplamente adotada hoje, só deve começar a fazer efeito na criminalidade em aproximadamente 20 anos. Enquanto isso, a sociedade brasileira terá que enfrentar seus velhos desafios na segurança pública.


GABRIEL CHEQUER HARTUNG, 25, economista, mestre em economia e doutorando da Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV-RJ (Fundação Getulio Vargas). É co-autor do estudo "Fatores Demográficos como Determinantes da Criminalidade".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
George Martine e Sonia Corrêa: Os perigos da simplicidade

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.