|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
A legalização do aborto ajudaria a combater a criminalidade?
SIM
Filhos indesejados e criminalidade
GABRIEL CHEQUER HARTUNG
OITO ANOS depois da divulgação do trabalho seminal de
Steven Levitt, muito se discute
sobre a validade e o uso do seu resultado. O artigo mostra que a decisão da
Suprema Corte americana, que permitiu em 1973 o aborto nos 50 Estados daquele país, foi determinante
para a forte redução nas taxas de criminalidade na década de 90. Segundo
o estudo, metade da redução de 40%
nas taxas de crimes violentos e cerca
de um terço da redução de 30% nas
taxas de crimes contra o patrimônio
se devem à legalização do aborto.
A evidência de Levitt é bem contundente. Primeiro, mostra que a criminalidade começou a cair nos EUA
exatamente 18 anos após a legalização
do aborto, momento em que os bebês
nascidos depois da decisão da Suprema Corte entravam na faixa etária de
maior envolvimento criminal. Em seguida, mostra que, nos cinco Estados
em que o aborto foi permitido três
anos antes do resto do país, as taxas
de criminalidade começaram a cair
exatamente três anos antes. E termina mostrando que os Estados nos
quais houve proporcionalmente mais
abortos durante a década de 70 foram
os que apresentaram redução mais
acentuada da criminalidade.
A justificativa teórica para o aborto
afetar a criminalidade se expressa em
duas proposições: 1) a legalização do
aborto reduz o nascimento de filhos
indesejados; 2) filhos indesejados
têm uma chance maior de se envolverem em atividades criminosas.
A primeira proposição é verdadeira
por definição. A segunda proposição
encontra suporte em aproximadamente 40 anos de pesquisa acadêmica. Por exemplo, Dagg (1991) mostra
que filhos que nasceram porque não
foi permitido pela Justiça que as
mães abortassem se tornaram adolescentes com probabilidade bem superior de participar de atividades criminosas se comparados com crianças
com mesmo "background" familiar,
mas cujas mães não expressaram judicialmente a intenção de interromper a gestação.
Meu estudo aborda a mesma questão sob uma ótica distinta. Vejo, usando dados de São Paulo, que fatores como a proporção de filhos nascidos de
mães adolescentes, nascidos de famílias monoparentais e a taxa de fecundidade são determinantes mais importantes da criminalidade 20 anos
mais tarde do que fatores socioeconômicos tradicionais, como o crescimento econômico, a desigualdade e a
presença da polícia.
A relação entre meu estudo e o de
Levitt é que o aborto reduz a criminalidade, em grande medida, porque reduz esses fatores. Porém, o objetivo
de nenhum desses trabalhos é justificar a legalização do aborto. Sua contribuição envolve apenas mostrar um
de seus benefícios. Cabe à sociedade
decidir, ponderando ao mesmo tempo os custos de ordem moral e normativa associados à saúde pública.
Além disso, há outras formas além do
aborto de atacar problemas como
gravidez indesejada, gravidez adolescente e alta fecundidade.
O investimento em educação é,
provavelmente, a medida mais óbvia
e mais eficaz para atacar o problema.
Analisando dados do Censo 2000,
percebemos que a fecundidade de
mulheres sem instrução chega a ser
seis vezes maior que a de mulheres
com 12 anos ou mais de educação formal, pertencentes à mesma faixa de
renda. Além de reduzir a fecundidade, a educação tem um impacto direto
na criminalidade, uma vez que adolescentes mais educados têm menor
probabilidade de se envolverem em
atividades criminosas. A pré-escola,
em especial, parece ser um grande redutor direto de criminalidade.
Políticas públicas que melhorem a
educação reprodutiva e planejamento familiar também devem contribuir
para a redução da criminalidade. Uma
experiência interessante é a do Instituto Kaplan, que reduziu em 91% a
ocorrência de gravidez entre adolescentes, estudantes do ensino médio,
em 24 escolas da rede estadual em 14
municípios do Vale do Ribeira.
Infelizmente, esse tipo de política,
mesmo que seja amplamente adotada
hoje, só deve começar a fazer efeito na
criminalidade em aproximadamente
20 anos. Enquanto isso, a sociedade
brasileira terá que enfrentar seus velhos desafios na segurança pública.
GABRIEL CHEQUER HARTUNG, 25, economista, mestre
em economia e doutorando da Escola de Pós-Graduação
em Economia da FGV-RJ (Fundação Getulio Vargas). É co-autor do estudo "Fatores Demográficos como Determinantes da Criminalidade".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES George Martine e Sonia Corrêa: Os perigos da simplicidade Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|