São Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Reforma do Judiciário em canto gregoriano

SAULO RAMOS

Aos que me cobraram a longa ausência desta página, explico: estive quatro meses ocupado com hospitais e médicos, com cirurgias e convalescenças, novas cirurgias, mais e duvidosas convalescenças. Quando estava a ponto de enlouquecer, troquei de cidade, de hospital, de médico e de doença. Fui internado na UTI do hospital de Ribeirão Preto, dirigido pelo dr. Palocci, o Pedro, que é médico como o irmão, o Antonio, futuro ministro da Fazenda. Ali, segundo tudo faz crer, fui curado.
Espero que este último Palocci, o Antonio, faça o mesmo com as finanças do Brasil ao suceder o outro Pedro, o Malan.
É isso. Assim, sobrou-me tempo e vida para observar, neste fim de dezembro, a movimentação das pessoas e dos acontecimentos em torno do governo eleito, ao menos enquanto tudo é uma espécie de "Lula-de-mel".
Um dos fatos positivos das novas engenharias políticas foi o adiamento da reforma do Judiciário. O projeto atual está paupérrimo. É preciso que o Senado designe outro relator e, com calma e suficiente debate, refaça o amazônico desastre que Bernardo Cabral legou ao Poder Legislativo, sob a indiferença e a omissão do governo Fernando Henrique.
No próximo ano haverá tempo, se o país tiver juízo para aproveitar a chance de modernizar e adotar regramento constitucional inteligente para a velha geringonça do funcionamento judiciário, submetido hoje a um irritantemente obsoleto emaranhado de normas desconexas e arcaicas, ultrapassadas até pelo passado.
No novo governo está pintando gente capaz de ajudar, e muito, o aperfeiçoamento da reforma. O futuro ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, é competente e tem capacidade para arregimentar uma boa equipe de juristas que, como ele, vivem o problema judiciário na prática e na teoria aplicável, em que, para tanto, é necessário a regra legal que nós, apenas para complicar, chamamos de "ferenda" (por fazer).
Na Educação, Cristovam Buarque é outro. Lembro-me dele na Comissão Afonso Arinos. Tinha muita consciência jurídica extraída da inteligência e do bom senso.
No Ministério da Fazenda, Antonio Palocci é portador de toneladas de bons critérios e dotado de espírito público, além de uma vontade ferrenha de trabalhar e acertar. Conheço-o bem, de Ribeirão Preto, cidade que tem a glória de ser vizinha de Brodósqui, minha terra. Aliás, Ribeirão Preto, neste ano, além de tudo o que já fez pelo Brasil (café, cana e Califórnia, lembram-se?), projetou duas personalidades marcantes para as esperanças brasileiras: Palocci, na política econômica, e Diego, do Santos, no futebol, menino de impressionante precocidade neste esporte.


[Lula] deve, porém, lembrar que o diploma de presidente da República recebe-se antes e o curso vem depois


Henrique Meirelles, indicado para o Banco Central, é outro que pode colaborar decisivamente. Em matéria de mercado, aqui e alhures, conhece tudo, o que não seria suficiente. Mas aí está o caminho das pedras. Ele raciocina lucidamente, rápido, sabe ouvir e entende o que ouve, para sempre ter certeza do que houve e como conduzir o que vai haver.
José Dirceu pode ser para Lula o que Quintanilha Ribeiro, há meio século, foi para Jânio Quadros, que era, inegavelmente, culto, instruído, inteligente, cheio de diplomas, mas temperamental e decidia coisas impulsivamente, o que provocava dor de cabeça nele e no país. Chico Quintanilha aconselhava, era o freio, o bom aviso, ponderação. Apenas fracassou na renúncia, quando Jânio quis imitar De Gaulle e acabou figurando Napoleão.
Lula, segundo informam, não é temperamental nem impulsivo; é humilde e, se o poder não estragar essa qualidade, poderá acertar. Chorou ao receber o primeiro diploma. Deve, porém, lembrar que o diploma de presidente da República recebe-se antes e o curso vem depois. E, dentre as matérias da escola, ouvir bons conselhos é a disciplina principal. Nisto José Dirceu se encaixa como luva, segundo me disse José Sarney, em quem confio há 40 anos.
E o que tem a ver todo esse pessoal com a reforma do Judiciário, que será elaborada pelo Congresso Nacional? Tem tudo a ver. Governo novo, bem votado, é a música preferida dos nossos parlamentares, que a cantam em coro gregoriano. E as novas regras constitucionais para o funcionamento judicial passam por todas essas matérias: economia, educação, legislação, processos mais ágeis, regramentos que levem justiça ao seu único destinatário, o povo.
Todas essas pessoas podem, no exercício de suas responsabilidades de poder político, sugerir e obter do Parlamento uma reforma digna de um país moderno e limpo.
Espero que atentem para essa relevante e urgente questão e não se deixem levar pelas envolventes rotinas dos cargos. Há muita coisa a ser feita neste país. Uma delas é assegurar que tudo funcione bem nos trilhos jurídicos e no berço da legalidade. A frase até que é bonita. Mas, se não fizerem isso, prefiro voltar para a UTI do dr. Palocci, o Pedro.

José Saulo Pereira Ramos, 73, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).


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