São Paulo, sexta-feira, 27 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Os três caminhos do novo presidente

RICARDO SEITENFUS

Resumem-se em três as opções que se apresentam para o exercício do poder do novo governo: a "gaúcha", a "chavista" e a "democrática".
É certo que a dimensão da extraordinária vitória pessoal de Lula, como enfatiza o realista José Dirceu, foi maior do que o PT e transcendeu a esquerda. Mas os números das urnas são inequívocos e indicam que, além de não dispor da maioria no Parlamento, o presidente enfrenta uma oposição que recolheu quase todos os governos estaduais.
Essas condições adversas impõem uma escolha difícil ao novo mandatário. Como governar e estar à altura das promessas e compromissos assumidos, se as condições impostas pelo eleitor são contraditórias e inviabilizam o exercício efetivo do poder no plano federal?
O primeiro caminho possível seria repetir a experiência do PT na administração gaúcha que ora finda. Ela seria marcada pela escolha de uma equipe coesa, originária de setores claramente ideológicos em detrimento de outros mais abertos e, sobretudo, a aplicação de uma estratégia de enfrentamento com os derrotados e seus aliados.
Nessa situação, haveria dupla rejeição -por um lado, dentro do próprio PT, ela não seria contemplada com responsabilidades governamentais e, por outro, externamente, a oposição, majoritária no Congresso, seria menosprezada em seu papel de representante de uma parte ponderável do eleitorado.
O maniqueísmo dessa visão simplista dividiria politicamente a sociedade em uma guerrilha verbal sem fim, na qual a visão "bushiana" do bem e do mal sobrepor-se-ia à racionalidade e ao espírito público. Assim, os acertos administrativos do governo gaúcho foram suplantados pelos erros políticos cometidos, tendo como consequência a derrota eleitoral de outubro.


Dividido entre a frustração gaúcha e o perigo venezuelano, Lula escolheu uma via inovadora


A segunda via possível consistiria na imitação do populismo chavista. O raciocínio é lógico e desdobra-se em duas fases. Num primeiro momento, aproveitando o calor da vitória, muda-se a Constituição com o apoio do eleitorado -manobra facilitada pela desorganização e inércia da oposição. Apresentada como entrave à realização da vontade popular, a Constituição seria moldada à imagem do presidente. Não olvidemos que o autogolpe e a ditadura constitucional integram o impressionante arsenal político latino-americano.
Num momento posterior, diante da reorganização de uma oposição contundente, seria feito um apelo à pressão das ruas. Esse chamamento ao protagonismo popular se materializaria em manifestações, comícios e passeatas consideradas como demonstrações de uma democracia viva e participante. A violência ocuparia seu espaço e o adversário político transformar-se-ia no inimigo que deve ser abatido. Ante-sala de todos os perigos, em particular do maior entre eles, a guerra civil, o apelo ao auxílio do povo foi tentado, inutilmente, em nossa história recente por Jânio e Jango.
Dividido entre a frustração gaúcha e o perigo venezuelano, o presidente Lula escolheu uma via inovadora e surpreendente para muitos: o caminho da democracia e do diálogo. Tal escolha reflete-se na formação de seu gabinete, que vai além da simples engenharia política. Ela alcança o patamar superior do interesse do Estado, contemplando, ao mesmo tempo, a expectativa de seu amplo leque eleitoral. Nesse sentido, o primeiro mandatário age como estadista, não fazendo o tradicional corte entre a estratégia utilizada para vencer as eleições e a aplicada para o exercício do poder.
Qualquer uma das outras alternativas comprometeria fatalmente o futuro do projeto petista. Por essa razão, enganam-se aqueles que apontam a "grande mudança" do discurso do PT. Muito aquém de seu programa, se o novo governo reduzir a corrupção e a promiscuidade entre público e privado, se for eficiente nas políticas sociais, se consolidar canais permanentes de participação da sociedade civil organizada e se reformular a política externa brasileira já estará lançando as bases da consagração do projeto petista num futuro próximo, com muito maiores chances de realizar as reformas de fundo que almeja.
Claro está que Lula não pode chamar a todos os setores para compor o governo. A imperiosa necessidade do dissenso define os limites da estratégia escolhida, pois não existe democracia sem oposição. Todavia isso não impede que personalidades marcadas pela sua atuação pública, e não integrantes de setores onde a política fez-se profissão, venham compor o ministério.
Algumas figuras extraordinárias da inteligência, da dedicação à causa pública e do empreendedorismo brasileiros, como Luiz Fernando Furlan, Marina Silva, Celso Amorim, Henrique Meirelles e Roberto Rodrigues, constituem unanimidade entre todos aqueles que percebem que os interesses da administração do país encontram-se além dos embates movidos pelos espíritos de capela e pelos conchavos partidários.
O fato de que tais figuras emblemáticas estão dispostas a contribuir para que surjam novos tempos compensa a aridez do caminho. Certamente a trilha escolhida é a mais íngreme e a que apresenta as maiores dificuldades. No entanto ela é fiel ao que nós, eleitores, esperávamos que trilhasse, pois é a única que, ao espelhar com fidelidade a vontade das urnas, concede condições objetivas para enfrentar os graves problemas nacionais.

Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 54, doutor em relações internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais, em Genebra (Suíça), é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e autor do "Manual das Organizações Internacionais" (Livraria do Advogado Editora), entre outros livros.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Saulo Ramos: Reforma do Judiciário em canto gregoriano

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.