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TENDÊNCIAS/DEBATES
A captura de Saddam Hussein facilita a administração no Iraque?
NÃO
Derrota na vitória
DEMÉTRIO MAGNOLI
O Saddam Hussein que emergiu de
um buraco funciona, agora, como
troféu de guerra de Bush. O programa
da Casa Branca prevê que a captura do
ditador deposto se desdobre num circo
judiciário, conduzido pelo regime fantoche iraquiano e teleguiado a partir de
Washington. O processo terá a dupla finalidade de justificar politicamente a
guerra de ocupação e impulsionar a
campanha de reeleição de Bush.
Mas a vitória tática tende a se revelar
uma derrota estratégica. Saddam em liberdade figurava como ameaça potencial -uma poderosa motivação para a
permanência das tropas ocupantes no
Iraque. Saddam na prisão significa que
o antigo regime foi sepultado em definitivo, o que acentua o problema da legitimidade da presença americana no país.
A guerra e a ocupação militar do Iraque estremeceram toda a ordem política e jurídica internacional. O argumento original de Washington, que era a suposta ameaça consubstanciada nas elusivas armas de destruição em massa de
Saddam, não teve acolhida no Conselho
de Segurança da ONU e hoje encontra-se desmoralizado. O argumento de
substituição, admitido apenas por um
punhado de países engajados na ocupação, foi a "missão civilizatória" de remover o regime tirânico de Saddam. A
prisão do antigo ditador encerra essa
"missão". O único curso capaz de restaurar alguma credibilidade à ordem internacional seria a transmissão do poder de ocupação para a ONU e a convocação de eleições gerais no Iraque.
Mas os EUA rejeitam esse programa.
A estratégia da administração Bush
consiste em manter a ocupação até a
instauração de um regime estável e subordinado a Washington. A lógica subjacente a essa estratégia é a de construir
uma esfera de influência permanente
no Golfo Pérsico, que funcionaria como
seguro contra a hipótese de desabamento da monarquia saudita. O discurso
político que a disfarça organiza-se em
torno do projeto dos neoconservadores
republicanos de "promover a democracia no mundo árabe". Nem mesmo
Tony Blair sente-se confortável com esse padrão de defesa da legitimidade da
ocupação do Iraque, pois o seu requisito
é atribuir aos EUA o papel de consciência moral do mundo.
As circunstâncias da captura de Saddam confirmaram a tese de que o ex-ditador não dirigia a resistência à ocupação. Os indícios sugerem que o núcleo
da rede de resistência armada é formado pelos dirigentes intermediários do
proscrito partido Baath, que no regime
deposto controlavam os órgãos de inteligência e segurança interna, as milícias
paramilitares e as unidades especiais do
Exército.
Quando Bagdá foi cercada, o comando militar americano optou por subornar os generais de Saddam, evitando a esperada batalha sangrenta pela capital.
Essa decisão antecipou a queda do regime, mas retardou indefinidamente a
conclusão dos combates. O partido
Baath, espinha dorsal do regime, tinha
um milhão de integrantes e dezenas de
milhares de quadros responsáveis pela
máquina burocrática, policial e militar
do Estado. A maior parte dessa elite política escapou ilesa e passou à clandestinidade. A resistência à ocupação que ela empreende, concentrada no chamado
Triângulo Sunita, nada tem a ver com
Saddam. Essa gente luta pela vida, pois
teme cair nas mãos das forças americanas ou, mais ainda, nas dos xiitas ou
curdos que reprimiram barbaramente
no passado recente.
A prisão de Saddam não reduzirá a resistência militar à ocupação, mas pode
acrescentar um explosivo elemento de
instabilidade ao cenário iraquiano. Esse
elemento é a revolta latente da população xiita. Os xiitas constituem a vasta
maioria da população no Iraque meridional e, em Bagdá, formam um extenso anel de pobreza que rodeia os bairros
sunitas. O espectro do retorno de Saddam limitava a sua ação política. Mesmo assim, as cidades de Basra, Kerbala e
Najaf tornaram-se palco de manifestações contra a ocupação americana. A
prisão do ex-ditador liberta os xiitas da
cápsula de temor: agora, nada impede
as suas lideranças de levantar a bandeira
da retirada das forças estrangeiras.
A fórmula da "democratização do Iraque" significa, do ponto de vista de
Washington, a instalação de um regime
subordinado à geopolítica dos EUA para o golfo Pérsico. O primeiro passo é a
programada criação de um governo de
transição, montado a partir de negociações restritas, que "convidaria" as forças ocupantes a ficarem no Iraque.
Do ponto de vista dos xiitas, o significado da "democratização do Iraque" é
outro: retirada das tropas americanas e
eleições gerais. Esse programa é inaceitável para Washington, pois resultaria
na formação de um governo de maioria
xiita, fora do controle dos EUA, ou na
guerra civil e na eventual desagregação
do país.
A captura de Saddam encerra a guerra
americana no Iraque e assinala, de fato,
o início da etapa de ocupação militar.
Os EUA estavam preparados, militarmente, para vencer a guerra. Não estão
preparados, politicamente, para sustentar uma prolongada ocupação e, menos
ainda, para construir um novo Iraque.
Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia
humana, é editor do jornal "Mundo - Geografia
e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP.
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