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São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A captura de Saddam Hussein facilita a administração no Iraque?

NÃO

Derrota na vitória

DEMÉTRIO MAGNOLI

O Saddam Hussein que emergiu de um buraco funciona, agora, como troféu de guerra de Bush. O programa da Casa Branca prevê que a captura do ditador deposto se desdobre num circo judiciário, conduzido pelo regime fantoche iraquiano e teleguiado a partir de Washington. O processo terá a dupla finalidade de justificar politicamente a guerra de ocupação e impulsionar a campanha de reeleição de Bush.
Mas a vitória tática tende a se revelar uma derrota estratégica. Saddam em liberdade figurava como ameaça potencial -uma poderosa motivação para a permanência das tropas ocupantes no Iraque. Saddam na prisão significa que o antigo regime foi sepultado em definitivo, o que acentua o problema da legitimidade da presença americana no país.
A guerra e a ocupação militar do Iraque estremeceram toda a ordem política e jurídica internacional. O argumento original de Washington, que era a suposta ameaça consubstanciada nas elusivas armas de destruição em massa de Saddam, não teve acolhida no Conselho de Segurança da ONU e hoje encontra-se desmoralizado. O argumento de substituição, admitido apenas por um punhado de países engajados na ocupação, foi a "missão civilizatória" de remover o regime tirânico de Saddam. A prisão do antigo ditador encerra essa "missão". O único curso capaz de restaurar alguma credibilidade à ordem internacional seria a transmissão do poder de ocupação para a ONU e a convocação de eleições gerais no Iraque.
Mas os EUA rejeitam esse programa. A estratégia da administração Bush consiste em manter a ocupação até a instauração de um regime estável e subordinado a Washington. A lógica subjacente a essa estratégia é a de construir uma esfera de influência permanente no Golfo Pérsico, que funcionaria como seguro contra a hipótese de desabamento da monarquia saudita. O discurso político que a disfarça organiza-se em torno do projeto dos neoconservadores republicanos de "promover a democracia no mundo árabe". Nem mesmo Tony Blair sente-se confortável com esse padrão de defesa da legitimidade da ocupação do Iraque, pois o seu requisito é atribuir aos EUA o papel de consciência moral do mundo.
As circunstâncias da captura de Saddam confirmaram a tese de que o ex-ditador não dirigia a resistência à ocupação. Os indícios sugerem que o núcleo da rede de resistência armada é formado pelos dirigentes intermediários do proscrito partido Baath, que no regime deposto controlavam os órgãos de inteligência e segurança interna, as milícias paramilitares e as unidades especiais do Exército.
Quando Bagdá foi cercada, o comando militar americano optou por subornar os generais de Saddam, evitando a esperada batalha sangrenta pela capital. Essa decisão antecipou a queda do regime, mas retardou indefinidamente a conclusão dos combates. O partido Baath, espinha dorsal do regime, tinha um milhão de integrantes e dezenas de milhares de quadros responsáveis pela máquina burocrática, policial e militar do Estado. A maior parte dessa elite política escapou ilesa e passou à clandestinidade. A resistência à ocupação que ela empreende, concentrada no chamado Triângulo Sunita, nada tem a ver com Saddam. Essa gente luta pela vida, pois teme cair nas mãos das forças americanas ou, mais ainda, nas dos xiitas ou curdos que reprimiram barbaramente no passado recente.
A prisão de Saddam não reduzirá a resistência militar à ocupação, mas pode acrescentar um explosivo elemento de instabilidade ao cenário iraquiano. Esse elemento é a revolta latente da população xiita. Os xiitas constituem a vasta maioria da população no Iraque meridional e, em Bagdá, formam um extenso anel de pobreza que rodeia os bairros sunitas. O espectro do retorno de Saddam limitava a sua ação política. Mesmo assim, as cidades de Basra, Kerbala e Najaf tornaram-se palco de manifestações contra a ocupação americana. A prisão do ex-ditador liberta os xiitas da cápsula de temor: agora, nada impede as suas lideranças de levantar a bandeira da retirada das forças estrangeiras.
A fórmula da "democratização do Iraque" significa, do ponto de vista de Washington, a instalação de um regime subordinado à geopolítica dos EUA para o golfo Pérsico. O primeiro passo é a programada criação de um governo de transição, montado a partir de negociações restritas, que "convidaria" as forças ocupantes a ficarem no Iraque.
Do ponto de vista dos xiitas, o significado da "democratização do Iraque" é outro: retirada das tropas americanas e eleições gerais. Esse programa é inaceitável para Washington, pois resultaria na formação de um governo de maioria xiita, fora do controle dos EUA, ou na guerra civil e na eventual desagregação do país.
A captura de Saddam encerra a guerra americana no Iraque e assinala, de fato, o início da etapa de ocupação militar. Os EUA estavam preparados, militarmente, para vencer a guerra. Não estão preparados, politicamente, para sustentar uma prolongada ocupação e, menos ainda, para construir um novo Iraque.


Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana, é editor do jornal "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP.


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