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São Paulo, sábado, 27 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A captura de Saddam Hussein facilita a administração no Iraque?

SIM

Um novo símbolo

DENIS LERRER ROSENFIELD

A política se faz por símbolos, e Saddam Hussein era certamente um símbolo para os iraquianos e para muitos daqueles que adotam uma atitude antiamericana.
Enquanto ele permanecia foragido, asas podiam ser dadas à imaginação, como se aquele que se dizia o herdeiro do profeta fosse de certa maneira dotado de poderes divinos. Escapar da gigantesca máquina de guerra anglo-americana era considerado por si só um grande feito. A sua ditadura sanguinária, responsável por centenas de milhares de mortos, passava para segundo plano -e quais não foram as loas que alguns teceram a esse "resistente", um "leão" que não se deixaria abater, um animal que, na iminência de sua prisão, morreria, sem dúvida, lutando.
Qual não foi nossa surpresa quando observamos aquele cruel ditador se comportando como um dócil cordeirinho. Devemos, no entanto, abandonar essa analogia, porque não podemos ser politicamente incorretos com o mundo animal, que exigiria um outro tipo de comparação, mais adequado ao seu ser. Se animais não-racionais pudessem se expressar por meio de nossos modernos meios de comunicação, eles certamente se indignariam.
As metamorfoses do ser Saddam Hussein foram surpreendentes, pois, de um indivíduo temível, que torturava e cortava suas vítimas em pedacinhos, surge uma pessoa que, primeiro, tenta barganhar, com dinheiro, a sua "rendição" ou "fuga", comportando-se como um reles mercador inescrupuloso, e, segundo, submete-se docilmente a seus captores. Nada de um bravo como sua publicidade o apresentava.
O marketing mostra aqui seus limites. A sua coragem era a do tipo do capitão Astiz, que, nos duros anos da ditadura argentina, era suficientemente "ousado" para matar freiras indefesas. A valentia do grande "líder" consistia em mandar bombardear aldeias curdas com armas químicas. A tortura de opositores era a regra.
As imagens televisivas em que o "leão" abre a boca "sem morder" -deslizei novamente no politicamente incorreto- para um médico militar encarregado de verificar as suas condições de saúde mostram um indivíduo sem forças, submisso, sujo, de barbas e cabelos crescidos -uma pálida lembrança de sua propaganda oficial. Os charutos e palácios de antanho tinham sido trocados por um balbuciar e por uma toca, na qual tinha se enfurnado para permanecer como "símbolo".
O "símbolo" na toca exibe um outro símbolo, o do fracasso dos ditadores, "corajosos" enquanto se escudavam em seus guardas de segurança! As televisões árabes, em sua aterradora maioria, não exibiram essas cenas, pois elas mostravam precisamente um contra-símbolo, um outro símbolo, o da derrocada de "governantes" cujo arbítrio consistia em aterrorizar os seus próprios súditos e os seus vizinhos. Irã e Kuait foram precisamente as vítimas de sua "política externa".
Quando um símbolo esmorece, todo um castelo desmorona, pois a arquitetura desse poder estava suspensa nessa essa figura sanguinária. O festival de tiros e as manifestações de alegria de curdos e xiitas são manifestações de júbilo, de crença em um outro mundo possível, embora, pelo momento, o seu desenho seja ainda impreciso.
O desafio de construção autônoma desse novo mundo tem, porém, como ponto de partida a destruição de um símbolo cujo fantasma continuava a atormentar as noites dos habitantes do Iraque. E se ele voltar? -podiam eles se perguntar. Mas ele não voltará e esse é o novo símbolo, que facilitará a nova administração do Iraque. Os percalços no caminho são ainda numerosos; uma época, contudo, foi encerrada.


Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".


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