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TENDÊNCIAS/DEBATES
A captura de Saddam Hussein facilita a administração no Iraque?
SIM
Um novo símbolo
DENIS LERRER ROSENFIELD
A política se faz por símbolos, e
Saddam Hussein era certamente
um símbolo para os iraquianos e para
muitos daqueles que adotam uma atitude antiamericana.
Enquanto ele permanecia foragido,
asas podiam ser dadas à imaginação,
como se aquele que se dizia o herdeiro
do profeta fosse de certa maneira dotado de poderes divinos. Escapar da gigantesca máquina de guerra anglo-americana era considerado por si só um
grande feito. A sua ditadura sanguinária, responsável por centenas de milhares de mortos, passava para segundo
plano -e quais não foram as loas que
alguns teceram a esse "resistente", um
"leão" que não se deixaria abater, um
animal que, na iminência de sua prisão,
morreria, sem dúvida, lutando.
Qual não foi nossa surpresa quando
observamos aquele cruel ditador se
comportando como um dócil cordeirinho. Devemos, no entanto, abandonar
essa analogia, porque não podemos ser
politicamente incorretos com o mundo
animal, que exigiria um outro tipo de
comparação, mais adequado ao seu ser.
Se animais não-racionais pudessem se
expressar por meio de nossos modernos meios de comunicação, eles certamente se indignariam.
As metamorfoses do ser Saddam Hussein foram surpreendentes, pois, de um
indivíduo temível, que torturava e cortava suas vítimas em pedacinhos, surge
uma pessoa que, primeiro, tenta barganhar, com dinheiro, a sua "rendição" ou
"fuga", comportando-se como um reles
mercador inescrupuloso, e, segundo,
submete-se docilmente a seus captores.
Nada de um bravo como sua publicidade o apresentava.
O marketing mostra aqui seus limites.
A sua coragem era a do tipo do capitão
Astiz, que, nos duros anos da ditadura
argentina, era suficientemente "ousado" para matar freiras indefesas. A valentia do grande "líder" consistia em
mandar bombardear aldeias curdas
com armas químicas. A tortura de opositores era a regra.
As imagens televisivas em que o
"leão" abre a boca "sem morder"
-deslizei novamente no politicamente
incorreto- para um médico militar encarregado de verificar as suas condições
de saúde mostram um indivíduo sem
forças, submisso, sujo, de barbas e cabelos crescidos -uma pálida lembrança
de sua propaganda oficial. Os charutos e
palácios de antanho tinham sido trocados por um balbuciar e por uma toca, na
qual tinha se enfurnado para permanecer como "símbolo".
O "símbolo" na toca exibe um outro
símbolo, o do fracasso dos ditadores,
"corajosos" enquanto se escudavam em
seus guardas de segurança! As televisões árabes, em sua aterradora maioria,
não exibiram essas cenas, pois elas mostravam precisamente um contra-símbolo, um outro símbolo, o da derrocada
de "governantes" cujo arbítrio consistia
em aterrorizar os seus próprios súditos
e os seus vizinhos. Irã e Kuait foram precisamente as vítimas de sua "política externa".
Quando um símbolo esmorece, todo
um castelo desmorona, pois a arquitetura desse poder estava suspensa nessa
essa figura sanguinária. O festival de tiros e as manifestações de alegria de curdos e xiitas são manifestações de júbilo,
de crença em um outro mundo possível,
embora, pelo momento, o seu desenho
seja ainda impreciso.
O desafio de construção autônoma
desse novo mundo tem, porém, como
ponto de partida a destruição de um
símbolo cujo fantasma continuava a
atormentar as noites dos habitantes do
Iraque. E se ele voltar? -podiam eles se
perguntar. Mas ele não voltará e esse é o
novo símbolo, que facilitará a nova administração do Iraque. Os percalços no
caminho são ainda numerosos; uma
época, contudo, foi encerrada.
Denis Lerrer Rosenfield, 53, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
e editor da revista "Filosofia Política".
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