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São Paulo, terça-feira, 28 de janeiro de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

O nacional por critério

Tragédia ameaça desabar sobre o Brasil: o desperdício da oportunidade criada pela eleição do novo governo. O dinamismo reprimido da economia brasileira é tão forte que, se a situação econômica mundial não degenerar, o Brasil poderá voltar a crescer. Será, porém, crescimento medíocre, injusto e, por isso mesmo, frágil, se não se honrar o compromisso eleitoral de mudar o modelo econômico. A idéia de fazer tudo em economia no figurino herdado e imposto, para poder melhor cuidar do social, é destruidora das nossas possibilidades nacionais. Natural que ela seja tão apreciada em Wall Street e em Davos.
Se vier a se consumar essa tragédia, a responsabilidade terá de ser compartilhada entre o governo do PT e a intelectualidade brasileira. Apesar de notáveis exceções, foi esta que faltou ao país quando o mais importante era superar a escolha inaceitável entre ruptura e humanização da ordem existente. Na ascensão de todas as grandes nações, o desafio à ordem então dominante no mundo veio acompanhado de movimentos intelectuais que desmascararam preconceitos antagônicos à construção de novas instituições e estratégias. Sem tal construção, jamais seremos um grande país.
A área mais premente em que lutar contra a confusão servil é o pensamento econômico. Precisamos decompor o saber convencional em elementos que merecem ser acatados, embora com outro sentido, e elementos que devem ser reconstruídos. O critério com que distingui-los é a utilidade à demarcação de rumo nacional capaz de transformar a democratização das oportunidades econômicas em motor de crescimento e de diminuir nossa vulnerabilidade às ordens dos governos ricos e aos caprichos do dinheiro fácil. Não se trata de subordinar entendimento a estratégia. Trata-se de usar os problemas do mundo real para dissipar as ilusões de uma pseudociência. Enumero em seguida algumas aplicações do critério nacional a temas do momento.
Superávit primário. O governo tem de se esforçar para manter e até para aprofundar o superávit fiscal primário não para agradar aos interesses financeiros, mas para nos livrar de seu domínio. Política anticíclica precisa subordinar-se a estratégia de emancipação nacional.
Aumento da poupança. Poupar mais nem sempre é vantajoso: o Japão, por exemplo, poupa em excesso. E, em princípio, elevação do nível de poupança é mais efeito do que causa do crescimento. Contentar-se com essa constatação, porém, é não entender o ponto: temos de forçar elevação da poupança para depender menos do capital estrangeiro, que é tanto mais útil quanto menos precisamos dele.
Superávit comercial. Em tese, é equívoco mercantilista focalizar só exportações. Convém tanto importar quanto exportar mais, aumentando nossa participação total no comércio. Parar por aí, entretanto, é perder o foco: precisamos aumentar nossas reservas para que qualquer gesto nosso de desobediência e de criatividade não ameace provocar crise no balanço de pagamentos.
Autonomia do Banco Central. Não é inerentemente benéfico ou prejudicial, democrático ou antidemocrático. Tudo depende das circunstâncias. Seria ruim agora porque reforçaria o poder de uma elite de financistas e de tecnocratas hostil à rebeldia nacional e às políticas necessárias para viabilizá-la.
A fase da vida brasileira que está começando desmoralizará rótulos ideológicos e partidários enganosos. E produzirá, entre as forças que se tinham na conta de progressistas, nova polarização entre as que confundem realismo com rendição, ainda que humanizadora, e as que levam a sério as palavras em nome das quais se ganhou a eleição.


Roberto Mangabeira Unger escreve nesta coluna às terças-feiras.
www.law.harvard.edu/unger


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