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ROBERTO MANGABEIRA UNGER
O nacional por critério
Tragédia ameaça desabar sobre
o Brasil: o desperdício da oportunidade criada pela eleição do novo governo. O dinamismo reprimido da
economia brasileira é tão forte que, se
a situação econômica mundial não
degenerar, o Brasil poderá voltar a
crescer. Será, porém, crescimento medíocre, injusto e, por isso mesmo, frágil, se não se honrar o compromisso
eleitoral de mudar o modelo econômico. A idéia de fazer tudo em economia no figurino herdado e imposto,
para poder melhor cuidar do social, é
destruidora das nossas possibilidades
nacionais. Natural que ela seja tão
apreciada em Wall Street e em Davos.
Se vier a se consumar essa tragédia, a
responsabilidade terá de ser compartilhada entre o governo do PT e a intelectualidade brasileira. Apesar de notáveis exceções, foi esta que faltou ao
país quando o mais importante era
superar a escolha inaceitável entre
ruptura e humanização da ordem
existente. Na ascensão de todas as
grandes nações, o desafio à ordem então dominante no mundo veio acompanhado de movimentos intelectuais
que desmascararam preconceitos antagônicos à construção de novas instituições e estratégias. Sem tal construção, jamais seremos um grande país.
A área mais premente em que lutar
contra a confusão servil é o pensamento econômico. Precisamos decompor o saber convencional em elementos que merecem ser acatados,
embora com outro sentido, e elementos que devem ser reconstruídos. O
critério com que distingui-los é a utilidade à demarcação de rumo nacional
capaz de transformar a democratização das oportunidades econômicas
em motor de crescimento e de diminuir nossa vulnerabilidade às ordens
dos governos ricos e aos caprichos do
dinheiro fácil. Não se trata de subordinar entendimento a estratégia. Trata-se de usar os problemas do mundo
real para dissipar as ilusões de uma
pseudociência. Enumero em seguida
algumas aplicações do critério nacional a temas do momento.
Superávit primário. O governo tem
de se esforçar para manter e até para
aprofundar o superávit fiscal primário
não para agradar aos interesses financeiros, mas para nos livrar de seu domínio. Política anticíclica precisa subordinar-se a estratégia de emancipação nacional.
Aumento da poupança. Poupar
mais nem sempre é vantajoso: o Japão, por exemplo, poupa em excesso.
E, em princípio, elevação do nível de
poupança é mais efeito do que causa
do crescimento. Contentar-se com essa constatação, porém, é não entender
o ponto: temos de forçar elevação da
poupança para depender menos do
capital estrangeiro, que é tanto mais
útil quanto menos precisamos dele.
Superávit comercial. Em tese, é equívoco mercantilista focalizar só exportações. Convém tanto importar quanto exportar mais, aumentando nossa
participação total no comércio. Parar
por aí, entretanto, é perder o foco: precisamos aumentar nossas reservas para que qualquer gesto nosso de desobediência e de criatividade não ameace provocar crise no balanço de pagamentos.
Autonomia do Banco Central. Não é
inerentemente benéfico ou prejudicial, democrático ou antidemocrático.
Tudo depende das circunstâncias. Seria ruim agora porque reforçaria o poder de uma elite de financistas e de tecnocratas hostil à rebeldia nacional e às
políticas necessárias para viabilizá-la.
A fase da vida brasileira que está começando desmoralizará rótulos ideológicos e partidários enganosos. E
produzirá, entre as forças que se tinham na conta de progressistas, nova
polarização entre as que confundem
realismo com rendição, ainda que humanizadora, e as que levam a sério as
palavras em nome das quais se ganhou a eleição.
Roberto Mangabeira Unger escreve nesta coluna às terças-feiras.
www.law.harvard.edu/unger
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