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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cultura não é mercadoria
EMIR SADER
Entre os grandes desafios que a
cultura brasileira tem a enfrentar
nos próximos meses está um de caráter
internacional, de cujo desfecho depende em grande parte o futuro da nossa
cultura. Trata-se da reunião da Organização Mundial do Comércio, que pretende legislar sobre a cultura, assim como sobre outros bens essenciais -como a educação, a saúde, os serviços sociais, o acesso à água- com a pretensão
de reduzi-los a mercadorias como outras quaisquer, compráveis por quem
tem dinheiro. Existe um prazo, do final
de março, para que as propostas sejam
encaminhadas à OMC, e o governo
FHC fez chegar propostas, o que na prática significa a aceitação da competência
da OMC de legislar sobre o assunto.
Um seminário realizado no Fórum
Social Europeu em Florença, em novembro de 2002, endereçou um apelo a
todos os governos interessados na preservação e na expansão dos espaços de
pluralismo e de todas as identidades diversificadas existentes no mundo, assim
como pela resistência à homogeneização cultural imposta por alguns enormes conglomerados concentrados em
alguns poucos países do centro do capitalismo.
Nele se constata como, no domínio
das indústrias culturais, essas empresas
estão em condições de controlar o conteúdo, a produção e os canais de divulgação das obras. As exigências de rentabilidade de seus acionistas levam essas
empresas a não correr riscos, saturando
a oferta cultural com um número limitado de produtos apoiados por enormes
campanhas midiáticas.
Como resultado, a grande maioria das
obras que dominam o mercado obedece a critérios estritamente comerciais,
em detrimento da criatividade e da diversidade dos conteúdos. A chamada
"abertura das fronteiras comerciais",
pregada pelas concepções liberais, impede o florescimento dos intercâmbios
culturais entre todos os países do mundo. Ao mesmo tempo, a memória e a
perspectiva histórica são deixadas de lado em favor do imediato e da ausência
de concepções críticas e independentes.
Diante dessa situação, é urgente que o
máximo de governos possa convocar a
elaboração de um instrumento jurídico,
fundado numa convenção internacional, que exclua a cultura da lógica de liberalização e mercantilização, como a
iniciativa nascida no 2º Fórum Social
Mundial de Porto Alegre, em janeiro de
2002. A Unesco, a Organização Internacional da Francofonia e outras entidades já se pronunciaram nessa direção.
Trata-se de elaborar um tratado que
afirme que a diversidade cultural é um
bem comum da humanidade e o direito
à diversidade é considerado como um
direito humano. Para garanti-lo é necessário reconhecer o direito dos Estados de agir no plano cultural para proteger seu patrimônio e de apoiar sua criação pelos meios que julguem necessários.
A chamada "abertura das fronteiras comerciais", pregada por liberais, impede o florescimento de intercâmbios culturais
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A prioridade das políticas públicas de
cultura não deve repousar no apoio a
obras que desejam competir nos esquemas comerciais e estéticos dominantes,
mas promover uma vida artística e cultural ativa entre a arte e a sociedade, o
que supõe que um número cada vez
maior de pessoas seja apoiado nos seus
desejos de criação, além da expansão
dos espaços em que se inventam novas
formas.
É necessário que o Brasil adote uma
posição firme e clara contra qualquer legislação da OMC sobre os temas culturais -assim como em questões de educação, saúde e serviços sociais, que são
direitos essenciais da humanidade.
Com essa posição, que tem o apoio dos
governos da França e do México, o país
poderá mobilizar o conjunto da região
na formulação de uma política alternativa, no quadro da Unesco e no marco
da reconstrução ampliada do Mercosul.
Trata-se de um assunto do Ministério
da Cultura, e não dos ministérios econômicos, porque não é uma questão de
lucro ou de mercado, mas de afirmação
da nossa identidade.
Por outro lado, os artistas e todos os
trabalhadores do imenso mundo da
cultura, suas organizações, os movimentos de educação popular devem
lançar uma campanha de informação
relativa aos perigos que pesam sobre a
diversidade cultural e o seu pluralismo.
Devem ser organizadas ações conjuntas
em razão da próxima reunião da OMC
em Cancún, em outubro de 2003, que
devem repetir as manifestações de repúdio à globalização neoliberal iniciadas em Seattle.
Que nisto também o novo governo
brasileiro seja uma liderança, clara nas
suas posições e decidida nas suas formas de ação. Que a cultura seja um
campo onde triunfem já em 2003 a esperança e a criatividade -plural e diversificada como toda cultura democrática.
Emir Sader, 59, é professor de sociologia da USP
(Universidade de São Paulo) e da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e autor de "Século 20: uma Biografia Não-Autorizada" (Perseu
Abramo), entre outras obras.
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