São Paulo, quinta-feira, 28 de fevereiro de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Goela abaixo

A decisão do Tribunal Superior Eleitoral de "verticalizar" as coligações, atrelando os acordos estaduais ao federal, reflete o que se poderia chamar de fetiche da ideologia. Vigora entre nós o senso comum de que partido ideológico é bom. Como nossos partidos não o são, cabe ao Estado obrigá-los a serem.
A premissa de que partido ideológico é melhor foi estabelecida nos anos 70, quando a oposição de esquerda definia a etiqueta em matéria de idéias. Escolada no marxismo e na política européia, a esquerda consolidou esse fetiche, bem como a idéia de que o PT é nosso único partido ideológico.
Não é bem assim. Tão democrático quanto os europeus, o sistema norte-americano não é ideológico. O que prevalece ali são duas "sublegendas" de um mesmo partido do establishment. Embora o Partido Democrata seja tido como mais à "esquerda" que o Republicano, ambos contam com poderosas alas de direita.
Não é necessário que um partido seja ideológico para que tenha coesão programática e disciplina interna e para que exerça sua função de representar interesses coletivos. É ilusão pensar que vamos reproduzir aqui a mesma evolução histórica da política européia. Nossa "geléia geral" tem mais a ver com o dinamismo e a fluidez da sociedade americana.
Outro fetiche é considerar que o PT seria "o" partido ideológico. Por suas origens e por estar mais afastado do poder, as idéias ainda têm nesse partido um peso maior do que nos outros. Mas o PT é uma confederação de tendências que vão desde a social-democracia mais anódina até a extrema esquerda mais lunática.
Na decisão do TSE, é inevitável vislumbrar um outro estrato de clichês, que remonta na tradição local ao Estado Novo do ditador Getúlio Vargas. O fetiche, nesse nível, é a noção de que o "nacional" deve se sobrepor ao "local" e de que o Estado deve se impor à "indisciplina" natural de nossa sociedade anômica, caótica.
Só o tempo e a prática democrática podem fazer decantar no Brasil um sistema partidário mais autêntico e funcional. Queremos acelerar esse processo por via normativa? Que se aprovem, então, as providências que inibiriam a infidelidade partidária e sufocariam as legendas sem expressão que só existem para serem alugadas.
A leitura política da decisão é devastadora. É absurdo reduzir a complexidade das situações estaduais, por mais vis que sejam certas motivações locais (as federais por acaso são diferentes?), à camisa-de-força do esquema nacional. E fica no ar a sensação de mudança de regras no meio do jogo.
Pode ser que a deliberação eleitoral não seja, como alguns de seus críticos apontam, eleitoreira. Isto é, que ela não tenha o propósito nem o efeito de beneficiar o candidato oficial, José Serra. Talvez venha até a prejudicá-lo, pois começa a incomodar a atmosfera "mexicana" em meio à qual se tenta descer esse candidato garganta abaixo do eleitorado, custe o que custar.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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