São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dolarização ou queda dos juros?



A lógica dos regimes abertos ao exterior sem estar preparados dá ao crescimento um perfil de "montanha-russa"

PIERRE SALAMA

Argentina, México e Brasil parecem envolvidos com um modelo econômico semelhante: um aumento do PIB cada vez mais dependente da entrada de capitais; um crescimento mais contundente das desigualdades, tanto entre os rendimentos do capital e os do trabalho quanto, nestes, entre a mão-de-obra não-qualificada e a qualificada; desemprego crescente e subemprego em volume superior ao dos anos 80; grandes flutuações da atividade econômica.
O que diferencia Argentina, Brasil e México é, no primeiro caso, a fixidez "constitucional" da taxa de câmbio nominal, atrelada ao dólar; no segundo, uma relação de menores sobressaltos, que permite frear a alta da taxa de câmbio real com minidesvalorizações programadas; no terceiro, é uma taxa de câmbio fixa, com bandas de flutuação que operam de acordo com intervenções esporádicas do governo.
As consequências sobre o nível dos respectivos juros nesses regimes de câmbio são antagônicas. As taxas, certamente, são elevadas para atrair os capitais do exterior, embora isso ocorra mais no Brasil que nos outros países.
A abertura brutal da economia às trocas internacionais e o rápido franqueamento do conjunto dos mercados, com o recuo do Estado, provocaram grande impacto: os aparatos produtivos evoluíram imensamente e as relações sociais mudaram, com o crescimento do desemprego e a cruel flexibilização dos contratos de trabalho. Houve, além disso, um verdadeiro processo inverso de "substituição das importações".
As economias submetidas a esse modelo passam a dilacerar-se entre a reestruturação da indústria, com impulso às exportações, e a destruição de segmentos relevantes do aparato industrial, com o aumento da força das importações. É natural que o descompasso comercial assuma proporções desmesuradas. Esses déficits têm de ser financiados; a necessidade de financiamento é ainda maior quando ao déficit se acrescentam o serviço da dívida, o turismo e o pagamento de dividendos.
Enquanto o funcionamento da economia-cassino não suscita temores de insolvência, os déficits são compensados pelas entradas de capital. Ambos vão no mesmo sentido, as segundas mais rápidas do que os primeiros; e a alta das reservas é resultado da diferença entre essas taxas de crescimento.
Quando os déficits continuam aumentando, mas o capital, por medo de uma desvalorização, pára de entrar e começa a sair, déficits e saídas somam-se, sem encontrar meios de financiamento internacional. E as reservas despencam, como no Brasil.
Isso explica a brutalidade da nova situação e a amplitude da necessidade de capitais. Em vez de uma subtração, acontece uma adição. O regime de acumulação torna-se uma armadilha, da qual é cada vez mais difícil sair.
A crise é desencadeada pelas medidas adotadas para dar cabo da especulação: juros altos, redução das despesas públicas, aumento das receitas. Ela é o saldo da lógica financeira desse regime de acumulação. Por isso pode ter grande amplitude e durar tão pouco tempo, como vimos no México e na Argentina.
Se o limite financeiro ao crescimento é superado mediante uma desvalorização e/ou uma ajuda substancial de bancos, instituições e governos estrangeiros, o crescimento pode ser retomado após uma recessão profunda, mas de duração limitada. A pronta recuperação da balança comercial e a entrada volumosa de capitais possibilitam suplantar a crise, ao menos por certo tempo, e retomar o crescimento sem mudar o regime de acumulação.
Retorna-se, assim, a um sistema de "subtração", até que as sujeições externas sejam tais que se imponha uma nova "adição", com o regresso brutal da crise. A lógica financeira dos regimes amplamente abertos ao exterior sem estar preparados para isso dá ao crescimento um perfil de "montanha-russa", do qual as principais vítimas são os mais despossuídos.
Podemos preservar esse modelo sem pagar o preço dos juros extremamente elevados, fonte da recessão e do endividamento colossal da União e dos Estados? Ou é preciso abandoná-lo e optar por diminuir as desigualdades e redefinir o papel do Estado na economia?
A primeira solução passa pela adoção concreta de outro regime de troca. A dolarização, adotada pela Argentina, desemboca em juros reais mais baixos que os do Brasil. As vantagens, desse ponto de vista, são patentes: aposta-se que o ganho de credibilidade obtido pelo abandono da autonomia monetária bastará para evitar especulação. Dolarizar é como dobrar as apostas.
O problema é que, se perdemos, perdemos muito. Prova disso é, diante da crise brasileira, a recusa categórica (inclusive da oposição argentina) a abandonar o plano de conversibilidade. As consequências de uma desvalorização seriam bem mais dramáticas do que no Brasil ou no México; todas as contas em dólar do dia-a-dia aumentariam drasticamente, e os bancos seriam incapazes de honrar obrigações, desencadeando um processo difícil de controlar.
A dolarização não evita o aumento dos déficits comercial e de conta corrente, como observamos na Argentina, nem permite escapar à lógica da economia-cassino. É um primeiro anteparo contra a especulação, mas também o último. Resta a segunda solução: baixar vertiginosamente os juros para fomentar o crescimento e aliviar o serviço da dívida interna, ou seja, favorecer esse crescimento por uma política que não seja restritiva de despesas públicas. Essa é a política mais razoável; a atual conduz ao desastre. Exige, talvez, alguma coragem política e vontade maior de independência diante dos EUA, do FMI e de alguns lobbies brasileiros.


Pierre Salama, economista francês, especialista em América Latina, é professor da Universidade de Paris-13 e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Estado, Internacionalização de Técnicas e Desenvolvimento.
Tradução de José Marcos Macedo





Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Cesar Maia: A democracia vai mal na América Latina
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.