São Paulo, Domingo, 28 de Fevereiro de 1999
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A democracia vai mal na América Latina



É bom pôr as barbas de molho. Pior que a memória da indexação dos preços é a do autoritarismo

CESAR MAIA

Quem acreditou na conversa do "fim da história" nunca veio à América Latina. Após um período de democratização, parece que a boca continua torta, se não pelo mesmo cachimbo, por cachimbos novos e não tão diferentes.
Embora sem a truculência tradicional, as reeleições com mandato em curso não têm sido exatamente um primor de prática democrática. Assim foi acontecendo no Peru, na Argentina e no Brasil. No Equador, a destituição do presidente Bucaram pelo Congresso (por, digamos, falta de decoro presidencial) não observou que seu lugar deveria ser ocupado pela vice-presidente. Por uma mudança constitucional "ex post", o próprio presidente da Câmara, Fabián Alarcón, assumiu a Presidência em 1997, num golpe parlamentar. Como se não bastasse, Fujimori e Menem querem a "rerreeleição", alegando que a emenda constitucional tratou dos mandatos para a frente, não do que exerceram "para trás".
O ano de 1999 não começou bem. No Haiti, o presidente fechou o Congresso à espera das eleições, que provavelmente trarão de volta um ex-presidente deposto num golpe. Na República Dominicana, o Parlamento foi ocupado por militares, a pedido do presidente, e depois desocupado (espera-se que continue). Na Nicarágua, o Congresso está parado. Após um acordo entre a direita e os sandinistas para aumentar o salário dos deputados (com péssima repercussão), uma disputa interna pelo poder nas comissões interrompeu o trabalho parlamentar. Parece não haver nada mais semelhante na Nicarágua do que a direita e a esquerda sandinista.
Mais grave é a situação no Paraguai e na Venezuela. No primeiro, o presidente do Supremo Tribunal mandou o general Oviedo, ex-golpista e líder do atual presidente, Raúl Cubas, voltar à prisão. Cubas disse que esse ato era ilegal e não o cumpriu. O Congresso, controlado pelo Partido Colorado (pelo qual Cubas se elegeu), ficou contra o presidente e iniciou seu processo de impeachment. O presidente do Tribunal Eleitoral disse que a escolha do presidente do Supremo não observara o quórum adequado; portanto, ele não era presidente de nada. Imediatamente, restituiu o direito eleitoral de Oviedo, que quer presidir o Partido Colorado. Ato contínuo, o presidente do Supremo, desconsiderando a opinião do presidente do Tribunal Eleitoral, além de permanecer no cargo, decidiu cassar os direitos políticos e eleitorais de Oviedo.
No último capítulo (homenagem ao "Febeapá", de Sérgio Porto), o candidato derrotado por Cubas, líder da oposição, propõe um diálogo nacional. O vice-presidente, porém, louco para assumir, prefere o confronto no Congresso em torno do impeachment.
Na Venezuela, o ex-golpista e atual presidente Hugo Chávez anda moderando seu discurso radical de campanha -mas pôs seus companheiros de aventura golpista em posições estratégicas, como a direção de Investigações, o Ministério dos Transportes e outras.
Em seguida, iniciou a temporada de provocações. Convocou por decreto um plebiscito; nele, pergunta se o eleitor quer ou não uma assembléia constituinte, para mudar o Estado e criar outro, "popular e participativo". Depois, deu um recado aos ministros da Corte Suprema: se criarem problemas para a convocação da assembléia, o povo irá para a rua -e ele, Chávez, irá junto. Isso em menos de um mês de governo.
Também remeteu ao Congresso uma mensagem para que aprove a Lei de Habilitação, que lhe permitirá legislar por decreto, durante seis meses, em matéria fiscal, financeira, orçamentária, previdenciária e de administração pública. E ai do Congresso se não lhe der esses poderes, que a Constituição prevê para situações de emergência.
Bolívar é o ídolo de Chávez. Sempre que ele se senta à mesa de reuniões, manda deixar livre a cadeira da direita e diz: "Aqui quem está sentado é o comandante Simón Bolívar". Em janeiro, García Márquez voltava de Cuba no avião de Chávez, para entrevistá-lo. No artigo que escreveu depois, o escritor dizia ter conseguido um feito inédito: entrevistar duas pessoas ao mesmo tempo, tendo uma só a seu lado.
Se 1999 começou assim, e com os precedentes antigos e novos que temos no continente, é bom pôr as barbas de molho. Que todos, inclusive a imprensa, comecem a tratar desse assunto. Pior que a memória da indexação dos preços é a indexação do autoritarismo.


Cesar Maia, 53, economista, foi prefeito do Rio de Janeiro de 1993 a 96. E-mail: factoides@openlink.com.br




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