São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Quinto dos infernos

Está terminando a minissérie "O Quinto dos Infernos", chanchada de TV que retrata as origens do Brasil independente por um prisma supostamente engraçado. Houve protestos, aqui e em Portugal, quanto à forma desairosa pela qual os personagens da Casa de Bragança são pintados, a meio caminho entre a imbecilidade e a devassidão.
A minissérie não é "desrespeitosa"; mesmo no gênero picaresco, ela é apenas e incrivelmente ruim. Criadores de entretenimento são livres para fantasiar sobre fatos históricos e até torcê-los na direção de seus propósitos, que não são, ainda mais neste caso, educar jovens ou ilustrar adultos, mas tão-somente tentar diverti-los.
Dado o peso desproporcional, porém, que a televisão exerce na formação de mentalidades no Brasil, não resta dúvida de que milhões de brasileiros passaram a conhecer o período da Independência como uma fotonovela picante, em que a política é um vago pano de fundo para o que importa de fato, as peripécias sexuais da corte carioca.
Salvo engano, a matriz recente dessa tendência foi o filme "Carlota Joaquina" (1995), que abordava os mesmos personagens e o mesmo período. Na visão desse filme, a "elite" luso-brasileira era uma camada de psicopatas e degenerados, que o roteiro se comprazia em focalizar sob perspectiva sempre que possível escatológica, a fim de realçar-lhe os ridículos.
Essa filmografia, da qual a minissérie "O Quinto dos Infernos" é a versão ainda piorada, resultou de décadas de história "crítica" e "progressista". A origem das misérias do Brasil seria, para essa corrente, resultado da ganância e do egoísmo das classes dominantes instaladas aqui desde a época da colônia, que não estavam à altura de seu papel histórico.
É uma maneira fácil e cômoda de explicar nosso atraso. Ela acaba invertendo o pressuposto da história crítica, que era o de localizar as estruturas responsáveis pela desigualdade e pelo subdesenvolvimento, substituindo-as por uma versão "pessoal": o d. João 6º devorador de frangos, a mulher pérfida, o filho irresponsável e leviano etc.
Veja o caso de d. João. Evitou que sua capital caísse nas mãos do invasor; abriu caminho para a criação de um "commonwealth" entre Portugal e Brasil, cujo território levou até o rio da Prata; negociou o quanto pôde com os ingleses e, quando a estes passou a convir a independência, manteve o comando do novo país na Casa de Bragança.
Esse é o homem que nossa filmografia "crítica" - na verdade sentimental, demagógica e comodista - descreve como imbecil. Não se trata de recuperar uma história oficial de grandes glórias e feitos que não houve. Mas de separar as estruturas impessoais que geraram uma nação como esta das fantasias de roteiristas simplórios.
Num país em que a população tivesse acesso a mais recursos de informação, cultura e lazer, "O Quinto dos Infernos" nem seria assunto. Mas aqui a minissérie substitui museus, escola, livros, ópera etc., impondo uma visão que é injusta não para com os Bragança, que o diabo os carregue, mas para com a nossa história mesma.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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