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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003

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MARCOS AUGUSTO GONÇALVES

A cultura do patrocínio

Os debates em torno do suposto "dirigismo cultural" no início do governo Lula, liderados pelo cineasta Cacá Diegues, embora úteis para colocar a questão na esfera do Ministério da Cultura e reiterar compromissos com o pluralismo e a liberdade de expressão, acabaram servindo mais para turvar do que para iluminar algumas questões relativas ao modo como está organizado o patrocínio à cultura.
O ponto principal da agenda não é discutir se devemos combater um Estado autoritário que, de esquerda ou não, dita o cânone cultural e persegue a arte "decadente". Não houve nem há no horizonte nenhuma revolução socialista ou movimento fascista que mesmo remotamente nos ameace com algo semelhante. Além disso, boa parte da cultura no Brasil, como se sabe, não depende diretamente de amparo do governo, já tendo encontrado forte enraizamento no mercado.
Isso não significa, de forma alguma, que o Estado deva se ausentar ou abdicar de políticas para a produção cultural, especialmente aquela que não encontra sustentação econômica. A cultura possui uma indiscutível dimensão pública, é constitutiva da identidade nacional e deve merecer apoio e recursos públicos. Também para isso foram criadas as leis de incentivo fiscal ao investimento em cultura.
A idéia inicial parecia ser a de estimular a formação de novos investidores, permitindo àqueles que destinassem recursos à área reavê-los, em parte, pela isenção de impostos. Dessa forma, o governo estaria concordando em destinar dinheiro público à cultura (impostos não pertencem às empresas), incentivando uma espécie de parceria com a iniciativa privada para dinamizar o setor.
No período Francisco Weffort, no entanto, promoveu-se um disparate: as empresas passaram a ter isenção integral de impostos para "investir" em cultura. As aspas justificam-se pelo simples fato de que a maior parte delas passou a nada investir. Apenas destinam verbas do governo (impostos) às iniciativas culturais que selecionam.
Os critérios de seleção, obviamente, tendem a se subordinar ao interesse de marketing, favorecendo apostas em projetos que pareçam mais capacitados a obter êxito no circuito comercial e ganhar espaço na mídia. Ou seja, justamente aqueles que, pelo potencial de obter retorno, deveriam receber apoio de verdadeiros investidores (aqueles cuja formação a lei iria estimular ao longo do tempo), e não doação de recursos públicos.
Desnecessário dizer que se criou uma indústria para captar essas verbas nos guichês das empresas (inclusive as públicas), na qual se alojaram interesses poderosos. Desnecessário dizer, também, que o acesso à decisão empresarial é tão mais fácil quanto mais bem relacionado e posicionado for o captador. Temos, então, uma bela inversão: dinheiro público distribuído por empresas segundo interesses de marketing ou ao sabor de projetos que, em muitos casos, deveriam merecer investimento privado, e não governamental.
Mais do que fantasmagorias sobre dirigismo cultural, esse sistema deveria merecer melhor consideração na agenda de nossos ideólogos e polemistas culturais, ainda que dele possam ser alguns dos beneficiários.


Marcos Augusto Gonçalves é editor de Opinião da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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