São Paulo, terça-feira, 28 de setembro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Eleição é sobre o futuro

O assunto de qualquer eleição é o futuro, não o passado. É o que deve ser e, mesmo nas democracias mais falhas e nas sociedades mais desiguais, é o que é. Há duas indagações primordiais em eleição. Quais são as tarefas da próxima etapa? Quem, entre os elegíveis, pode melhor executá-las? Quando, como ocorre no Brasil, os partidos são frágeis, a televisão mais importante vive mancomunada com o poder, a comunicação eleitoral se faz com truques milionários e quase todas as correntes adotam o mesmo discurso açucarado e mentiroso de centro-esquerda, uma neblina encobre a política. O eleitor fica obrigado a exercer sua intuição para penetrá-la.
O passado, de cada candidato, de cada partido, ou de cada experiência nacional ou local, conta, porém só como indício, entre outros, do que pode acontecer no futuro. Um governante pode ser bem avaliado, ou até melhorar de avaliação, e ser contudo destituído sem cerimônia pelo eleitorado na próxima eleição. Basta que a maioria julgue que as tarefas do momento seguinte sejam outras e que haja outro melhor para executá-las. Assim fizeram os britânicos quando despediram Churchill logo depois de haver ele concluído vitoriosamente e com brilho ímpar uma guerra que pusera tudo em risco.
Errado supor que casos como esse sejam excepcionais; são manifestações dramáticas de regra geral. A política eleitoral das democracias não é rodada de cerimônias para distribuir prêmios aos que mostraram melhor desempenho; é luta a respeito do futuro. Disse Suetônio que a ingratidão para com seus grandes homens é marca dos povos fortes. A ingratidão para com os governantes, grandes ou pequenos, é marca das democracias, ainda que relativas.
Tudo isso ajuda a entender as eleições municipais de 2004 e sobretudo a sucessão presidencial de 2006. As baixas expectativas do eleitorado, que parece conformado com o atual governo como mal menor, os acertos pecuniários entre os detentores do poder e os detentores do dinheiro, a frágil e estreita recuperação da economia, a desmoralização deliberada da idéia de alternativa nacional que reconcilie desenvolvimento com justiça e a cooptação de muitos dos partidos e das personalidades que poderiam representar a alternativa transformadora convencem muitos que está assegurada a reeleição do presidente.
Não está. Há imensa frustração no país. Oportunidade e direito são as duas grandes reivindicações -entrelaçadas- da nação. Oportunidade, de emprego, empreendimento e ensino, para dar vez aos esforçados. Direito para conter e mudar o ambiente de favoritismo, de conluio e de vale-tudo que corrompe nossa vida nacional. Todo o mundo sabe que é difícil construir força e candidatura que respondam a essas reivindicações. Nenhuma das duas grandes coalizões que dominam hoje nossa política tem credibilidade para fazê-lo. A independência, tanto da mídia quanto dos partidos, está comprometida. E é difícil, para pessoas ou para mensagens, se tornarem conhecidas em todo o Brasil.
A outra metade da história, porém, é que o país, aparentemente resignado a seu destino, quer outro destino. Quer muito. Quer tanto que está à busca de quem o ajude a sair desse. Não lhe tem faltado audácia. Que não lhe faltem audaciosos.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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