São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Os arquivos e o futuro

"Eu tenho certeza. Conheço o meu marido. Seu corpo. A sua expressão. A curva dos seus lábios." Essas palavras, de Clarice Herzog, não pareceram ao ministro Nilmário Miranda, dos Direitos Humanos, um motivo suficiente para aprofundar as investigações sobre as fotos publicadas pelo jornal "Correio Braziliense". O ministro preferiu a opção mais fácil, aferrando-se à investigação da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), que concluiu em horas que as fotos não são de Vladimir Herzog. As fotos deflagraram uma crise institucional, pontuada por manifestação de insubordinação do comando do Exército e por operações de bastidores destinadas a soterrar o tema dos arquivos dos "anos de chumbo" da ditadura militar. No baile do Dia do Aviador, no Clube da Aeronáutica, o presidente Lula assegurou que o governo "não tem problema" em conservar ocultos os arquivos e sugeriu que os militares tratem do assunto com a Câmara dos Deputados e a sua Comissão de Direitos Humanos. Nilmário Miranda desrespeita seu passado de defensor dos direitos humanos quando eleva a célere investigação da Abin à condição de verdade revelada. Lula convida à quebra da hierarquia quando aconselha chefes militares a pressionarem o Parlamento, passando por cima do Ministério da Defesa, e ilude a sociedade ao fazer de conta que não é o Executivo que detém a chave-mestra dos arquivos. No fundo, o ministro e o presidente expressam a natureza da transação entre militares e civis firmada no momento em que se encerrava a ditadura militar. Formalmente, essa transação resume-se à lei de anistia. Na prática, é um compromisso para ocultar o passado. No crepúsculo de seu segundo mandato, Fernando Henrique assinou decreto que assegura sigilo de meio século, renovável indefinidamente, a documentos classificados como "ultra-secretos". Os alvos do sigilo eterno não são arquivos relacionados à segurança externa, que perdem valor instrumental após algumas décadas, mas documentos que abrangem desde os feitos de Duque de Caxias na Guerra do Paraguai até os dos chefes militares e seus subordinados nos subterrâneos da tortura nos anos 70. O que se esconde não são crimes de indivíduos, mas papéis históricos desempenhados pelo Estado e as Forças Armadas. O Estado brasileiro acerta as contas com o período da ditadura militar mediante indenizações a perseguidos políticos. Essa estratégia dilui o confronto de princípios éticos no caldo da noção de injustiça pessoal e limita o campo da política à esfera da compensação. Na lógica da transação que encerrou a ditadura, o dinheiro das indenizações substitui a narrativa histórica do funcionamento da máquina de repressão política. Na Base Aérea de Brasília, o presidente do STJ, Edson Vidigal, classificou como "incabível" a abertura dos arquivos e citou a canção de Raul Seixas: "E agora eu me pergunto, e daí? Eu tenho uma porção de coisas pra conquistar e não posso ficar aqui parado". Eis uma síntese da concepção de que o Estado deve tutelar a sociedade, seqüestrando o passado para moldar o futuro sem interferência da plebe. O governo tem a obrigação de discordar, abrindo todos os arquivos da repressão.
 
Ao contrário do que escrevi semana passada, a TV Rocinha é um negócio legítimo, amparado em contrato de difusão de sinais de TV por assinatura. O sucesso da empresa evidencia que seus responsáveis descobriram há tempo que o "asfalto" e o "morro" são duas faces de uma única cidade.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

magnoli@ajato.com.br


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