São Paulo, quinta-feira, 28 de outubro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Os sapatos do coronel

RIO DE JANEIRO - Insisto na imagem que aprecio: uma borboleta bate as asas na Tailândia e um furacão destrói metade da Flórida e de Cuba. Nem sempre a causa é proporcional ao efeito. Citando esta filosofia de almanaque, entro no assunto.
Crise militar, no Brasil, é recorrente. Nem precisa de uma causa específica. Está latente desde a Guerra do Paraguai, passando por Proclamação da República, Estado Novo e movimento de 64, para citar os picos. No varejo, até a obrigatoriedade da vacina, do Oswaldo Cruz, foi motivo para uma crise que por pouco não engrossou e terminou em guerra civil.
Motivos nunca faltaram, justos ou injustos, sempre há um caldo de descontentamento entre os militares, mesmo quando estão no poder, abrindo-se alas radicais dispostas a tudo.
O caso da semana passada, provocado pelas fotos de um preso torturado pelo regime militar, qualquer que seja o seu desdobramento, será somado a outros menos relevantes e, sobretudo, à permanente reivindicação salarial, ao sucateamento dos equipamentos e outros problemas estritamente profissionais da classe.
Lembro um detalhe anterior a 1964. Numa reunião na editora Civilização Brasileira, Nelson Werneck Sodré, que era general do Exército e editado da casa, estava acompanhado de um coronel, seu amigo há anos. Não havia ainda a ameaça do golpe, pelo contrário, havia um plano de reformas de base que equivaleria a uma verdadeira e incruenta revolução.
Conversa vai, conversa vem, falou-se na situação salarial dos militares. Nelson pediu que o coronel mostrasse a sola de seus sapatos. Estavam com furos, tampados por um reforço de papelão.
Os entendidos em política, entre os quais não me incluía, fizeram uma leitura errada da sola daqueles sapatos. Meses depois, tanto Nelson Werneck Sodré como o editor Ênio Silveira estavam na cadeia. E eu, que nada tinha com aquilo, também.


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