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FERNANDO DE BARROS E SILVA
Cidades de Deus
Quem vem do Rio em direção a
São Paulo e chega à cidade pela
marginal do Tietê é logo lançado diante de um cenário devastador, pelo qual
passará incólume em questão de minutos se tiver a sorte de não ficar entalado no tráfego.
As margens externas são ladeadas
por favelas miseravelmente típicas
-casebres de madeira e lixo amontoados num equilíbrio incerto, como
que ameaçando se projetar sobre a
avenida. Nas margens internas, separa
a marginal do rio -leito caudaloso de
águas turvas e imundícies acumuladas, coisa de fazer inveja a qualquer
poema de João Cabral- um matagal
medonho, resposta hostil de restos da
natureza a anos, ou décadas, de omissões e descaso.
Há enormes escavadeiras trabalhando ruidosamente na expansão do leito
do rio ou coisa que o valha. Integrados
à paisagem, os guindastes dentados
sugerem animais pré-históricos, peças
de uma espécie de museu animado da
modernidade brasileira. Placas oficiais anunciam, como de hábito, que
estamos "em obras". A sensação que
fica, porém, para quem observa minimamente o espetáculo ruinoso à sua
volta, é de desalento, deterioração, terra arrasada. Mais do que isso: a sensação é a de que aquilo tudo é virtualmente irrecuperável.
A cena degradante e degradada da
porta de entrada da maior capital do
país é uma entre tantas outras, tão ou
mais abjetas, que compõem o cotidiano das nossas Cidades de Deus.
A percepção da miséria brasileira,
no entanto, ainda é em grande parte
refém de uma imagem pré-jusceliniana do país. Ainda associamos a miséria à vida rural, aos rincões e sertões
inatingidos pelos benefícios da civilização. Somos refratários à compreensão da miséria como resultado do progresso, do qual ela é parte, não resíduo. Décadas de ditadura de telenovelas globais devem ter contribuído para
isso. Presépios festivos, as favelas na
Globo, nas raríssimas vezes em que
aparecem, acabam sempre em pagode
no bar da Dona Jura.
Também o peso desproporcional de
um movimento em vários sentidos arcaicizante como o MST é ao mesmo
tempo sintoma e reflexo desse imaginário pré-JK. E mesmo o Fome Zero,
até agora o grande slogan do governo
Lula, em que pese seu esforço retórico
de integração social, parece padecer
desse mesmo déficit simbólico em relação às urgências da atualidade.
Das políticas públicas da era FHC
nem se fale -tímidas e insatisfatórias,
quando não ausentes, elas são como o
Rodoanel, passam ao largo das cidades. E não há estatísticas oficiais sugerindo avanços sociais aqui ou acolá
capazes de esconder que a miséria urbana e a vida nas metrópoles pioraram muito em muito pouco tempo.
Um filme como "Cidade de Deus"
está pronto há pelo menos 15 ou 20
anos. Sua descoberta tardia pode significar que o país, enfim, pede novos
espelhos para se mirar. Ou que entramos numa espécie de convivência crítica com o inaceitável, como as escavadeiras em obras do Tietê, incorporadas à miséria e às imundícies que revolvem e tentam em vão remover.
Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil
da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às
quintas-feiras nesta coluna.
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