São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 2002

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FERNANDO DE BARROS E SILVA

Cidades de Deus

Quem vem do Rio em direção a São Paulo e chega à cidade pela marginal do Tietê é logo lançado diante de um cenário devastador, pelo qual passará incólume em questão de minutos se tiver a sorte de não ficar entalado no tráfego.
As margens externas são ladeadas por favelas miseravelmente típicas -casebres de madeira e lixo amontoados num equilíbrio incerto, como que ameaçando se projetar sobre a avenida. Nas margens internas, separa a marginal do rio -leito caudaloso de águas turvas e imundícies acumuladas, coisa de fazer inveja a qualquer poema de João Cabral- um matagal medonho, resposta hostil de restos da natureza a anos, ou décadas, de omissões e descaso.
Há enormes escavadeiras trabalhando ruidosamente na expansão do leito do rio ou coisa que o valha. Integrados à paisagem, os guindastes dentados sugerem animais pré-históricos, peças de uma espécie de museu animado da modernidade brasileira. Placas oficiais anunciam, como de hábito, que estamos "em obras". A sensação que fica, porém, para quem observa minimamente o espetáculo ruinoso à sua volta, é de desalento, deterioração, terra arrasada. Mais do que isso: a sensação é a de que aquilo tudo é virtualmente irrecuperável.
A cena degradante e degradada da porta de entrada da maior capital do país é uma entre tantas outras, tão ou mais abjetas, que compõem o cotidiano das nossas Cidades de Deus.
A percepção da miséria brasileira, no entanto, ainda é em grande parte refém de uma imagem pré-jusceliniana do país. Ainda associamos a miséria à vida rural, aos rincões e sertões inatingidos pelos benefícios da civilização. Somos refratários à compreensão da miséria como resultado do progresso, do qual ela é parte, não resíduo. Décadas de ditadura de telenovelas globais devem ter contribuído para isso. Presépios festivos, as favelas na Globo, nas raríssimas vezes em que aparecem, acabam sempre em pagode no bar da Dona Jura.
Também o peso desproporcional de um movimento em vários sentidos arcaicizante como o MST é ao mesmo tempo sintoma e reflexo desse imaginário pré-JK. E mesmo o Fome Zero, até agora o grande slogan do governo Lula, em que pese seu esforço retórico de integração social, parece padecer desse mesmo déficit simbólico em relação às urgências da atualidade.
Das políticas públicas da era FHC nem se fale -tímidas e insatisfatórias, quando não ausentes, elas são como o Rodoanel, passam ao largo das cidades. E não há estatísticas oficiais sugerindo avanços sociais aqui ou acolá capazes de esconder que a miséria urbana e a vida nas metrópoles pioraram muito em muito pouco tempo.
Um filme como "Cidade de Deus" está pronto há pelo menos 15 ou 20 anos. Sua descoberta tardia pode significar que o país, enfim, pede novos espelhos para se mirar. Ou que entramos numa espécie de convivência crítica com o inaceitável, como as escavadeiras em obras do Tietê, incorporadas à miséria e às imundícies que revolvem e tentam em vão remover.


Fernando de Barros e Silva é editor de Brasil da Folha. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de Otavio Frias Filho, que escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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