São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

As universidades e o mérito

DENIS LERRER ROSENFIELD

O papel aguenta qualquer coisa, desde planos mirabolantes até desenhos minuciosos de difícil execução. Todo novo governo tem uma tendência de redesenhar o organograma ministerial, como se essa tarefa, por si só, fosse de natureza a implementar uma nova política. O governo Lula, que ora se inicia, parece padecer da mesma síndrome, no momento em que, por exemplo, pretende transferir as universidades federais para uma secretaria especial ou para o Ministério da Ciência e Tecnologia. Medidas desse tipo foram cogitadas durante os dois mandatos do governo FHC, sem que fossem executadas, pela simples razão de que não havia uma política universitária. De nada adianta mudar o lugar de administração das universidades se não se sabe claramente o que fazer com elas.
Durante os últimos anos, muito se falou de autonomia, sem que se soubesse o que se entende por isso. Cada grupo de pressão, corporação e associação tomam o significado dessa palavra numa acepção diferente, sem chegar a um consenso mínimo. Ademais, uns pretendem que a autonomia seria auto-regulamentada constitucionalmente, outros acreditam que seria necessária uma lei complementar. Além disso, considerando a força das associações docentes e de funcionários, a partidarização e a ideologização da discussão são muito acentuadas. Ou seja, a confusão é total.
Não é possível que essa nebulosa dure mais quatro anos, sob pena de danos irreversíveis. Academicamente, as universidades federais, sobretudo as melhores, têm mostrado muito bons indicadores, embora sejam burocratizadas e ineficientes administrativamente, sem falar da ausência crônica de recursos. Como as negociações entre o Ministério da Educação e as associações de reitores, docentes e funcionários foram frequentemente improdutivas, questões essenciais não foram equacionadas. Destaquemos algumas que deveriam entrar na pauta de qualquer reforma.
A diferenciação salarial e de recursos se impõe entre as universidades e, mesmo, no interior de cada uma delas. Uma universidade pouco qualificada e de baixa produtividade não poderia pretender receber o mesmo volume de recursos de uma universidade altamente qualificada, com docentes voltados para um trabalho de grande produtividade. Um ranking das universidades, baseado numa séria avaliação do ensino e da pesquisa, deveria orientar a distribuição de recursos. Evitar-se-iam assim as pressões políticas e partidárias, adotando-se um critério objetivo. Os reitores e a comunidade universitária voltar-se-iam para a solução dos seus problemas, em vez de perambularem pelos corredores de Brasília em busca de recursos.


A diferenciação salarial e de recursos se impõe entre as universidades e, mesmo, no interior de cada uma delas


Se a avaliação não se traduz por recursos diferenciados, além da injustiça produzida, ela permanece um instrumento inócuo ou de baixa eficácia. Uma tal política abriria caminho para uma espécie de contrato, que estabeleceria metas a serem cumpridas, contemplando, também, as universidades improdutivas que teriam objetivos concretos a serem perseguidos. O atual governo, sobretudo via Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e Inep (Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais), desenvolveu indicadores confiáveis das universidades no tocante à qualificação docente, à pesquisa e ao ensino que deveriam ser levados em consideração. Talvez um dos maiores méritos da atual administração resida na produção desses indicadores ao ter estabelecido os princípios de uma administração moderna do Estado.
Da mesma maneira, deveria haver um estímulo salarial para os professores mais qualificados e de maior produtividade. Um docente que nada faz recebe o mesmo salário de um docente dedicado e produtivo. Se não fosse a convicção interna de cada um e a ética das relações universitárias, o descaso e o desânimo tomariam conta de tudo. A ideologia da igualdade tem sido frequentemente um estímulo para a mediocrização da produção de conhecimento.
Hoje, não é mais possível um divórcio entre o mundo acadêmico e o empresarial. Economias modernas estão baseadas na produção do conhecimento em suas repercussões tecnológicas. Qualquer atitude que se volte contra essa interação é o reflexo de um viés ideológico que obstaculiza o avanço da pesquisa e a modernização do setor produtivo. Criam-se aqui condições para aportes adicionais de recursos, pois não se pode tudo pedir ao Estado sem que haja uma contrapartida correspondente.
Por último, uma vez que os recursos disponíveis não são infinitos, coloca-se a questão do ensino pago nas universidades públicas. Por justiça, não haveria por que tratar igualmente indivíduos socialmente desiguais. Ou seja, os menos favorecidos socialmente nada pagariam, além de poderem se beneficiar de bolsas de estudo. Os socialmente mais favorecidos pagariam por seus estudos, contribuindo, assim, para bolsas de estudo, bibliotecas e laboratórios. Não se trata de nenhuma panacéia, porém de medidas que muito ajudariam às universidades, que poderiam, cada uma, contar com uma pequena fundação de amparo a pesquisas.


Denis Lerrer Rosenfield, 50, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É autor, entre outros livros, de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática, 1995)


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Newton Lima Neto: Aprendizagem já!

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.