São Paulo, Terça-feira, 28 de Dezembro de 1999


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TENDÊNCIAS E DEBATES

Terceiro setor e economia solidária

FERNANDO HADDAD

Um quiproquó paralisa a esquerda. Uma nova direita resolve empunhar duas bandeiras caras ao movimento social progressista: o associativismo e o cooperativismo. Trata-os pelas alcunhas de terceiro setor e economia solidária. Num pólo político, ONGs comporiam uma dimensão social tida como pública não-estatal. Num pólo econômico, cooperativas de trabalhadores comporiam uma dimensão social tida como coletiva, ou privada não-individual. Sem cerimônia, a nova direita apropria-se daquilo com o que só a esquerda parecia poder se comprometer.
Como isso foi possível e o que fazer diante desse fato novo? Denunciar como retrógrada e abandonar uma agenda defendida pela esquerda nos últimos 200 anos?
Antes de tudo, precisamos explicar o porquê desse súbito interesse do atual "reformismo conservador" por essas formas de organização social. Infelizmente, à guisa de defesa dos legítimos interesses da sociedade, encontramos os motivos menos nobres. Paradoxalmente, o associativismo e o cooperativismo estão sendo usados para destruir a proteção jurídica conquistada, particularmente no segundo pós-guerra, pelos cidadãos sem propriedade.
No plano político, para garantir os recursos suficientes para remunerar "convenientemente" os detentores dos títulos da dívida pública, promove-se um processo espúrio de terceirização, deixando a cargo de ONGs a execução de funções antes consideradas obrigações do Estado. De várias maneiras as ONGs colaboram na solução da propalada "crise fiscal": seus funcionários muitas vezes prestam serviço voluntário, não recebendo nenhuma remuneração; também prestam um serviço público, mas sem direito à aposentadoria pública; e muitas ONGs recebem recursos de agências internacionais dos quais as máquinas estatais não são mais consideradas dignas etc.
No plano econômico, o objetivo não é outro senão o mesmo "corte de custos". Aqui, são as cooperativas o instrumento usado para promover a usurpação de direitos. Em primeiro lugar, os trabalhadores das cooperativas, considerados sócios e não empregados do "empreendimento", não estão sujeitos à limitação da jornada de trabalho ou ao salário mínimo da sua categoria. Em segundo lugar, férias, descanso remunerado, FGTS, 13º salário, entre outros direitos, podem ser facilmente negados ao trabalhador pelo empresário contratante da cooperativa, que atribui sua atitude aos imperativos do mercado. Por fim, não há indenização pela demissão dos trabalhadores, já que, do ponto de vista legal, não haveria relação trabalhista entre o empresário contratante da cooperativa e a própria cooperativa, mas tão-somente uma relação de direito civil.
A esse respeito, algumas mudanças legislativas e o Ministério Público muito têm feito para coibir abusos, mas muitas vezes sem discernimento para separar o joio do trigo, isto é, as chamadas coopergatos (cooperativas de fachada) das verdadeiras cooperativas.


São as cooperativas o instrumento usado para promover a usurpação de direitos
A esquerda começa a acordar para o problema e esboça uma interessante reação. A Abong (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais) e a CUT acusam o golpe, cujo fundamento num e noutro caso é absolutamente o mesmo, e movimentam-se na mesma direção. Em vez de recolher as bandeiras do associativismo e do cooperativismo desfraldadas pela direita, essas duas instituições tomam o único caminho que sua história de lutas permitiria: o da politização.
Ao "reformismo conservador" só interessam ONGs e cooperativas despolitizadas. Pois, tão logo se politize uma ONG, ela passa de braço terceirizado do poder estatal, disfarçado de poder público, a importante mecanismo promotor da dimensão deliberativa da democracia, tendo como objetivo primordial a socialização do orçamento público por meio da democratização do sistema tributário. Da mesma forma, tão logo se politize uma cooperativa, ela passa de braço terceirizado do poder do capital, disfarçado de poder coletivo, a importante mecanismo promotor da dimensão substantiva da democracia, tendo como objetivo a socialização da propriedade por meio da democratização do sistema de crédito.
É dessa forma que a correta ação política da Abong e da CUT (e também do MST, da Anteag -Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão-, das incubadoras de cooperativas e bancos populares, dos conselhos de orçamento participativo etc.) deve ensejar a reapropriação pela esquerda das históricas bandeiras.
É claro que tudo isso seria enormemente facilitado por um governo de esquerda. Nessa eventualidade, poderíamos imaginar um projeto de sociedade que, implementado numa escala à altura dos desafios presentes, John Stuart Mill não hesitaria em chamar de socialismo republicano: socialismo porque recupera a discussão sobre formas alternativas de propriedade, tema que o neoliberalismo quer sepultar, impondo-nos a falsa escolha entre a propriedade estatal e a privada, que, historicamente, só têm se distinguido pela forma e não pelo conteúdo; republicano porque revaloriza o viver cívico ("vivere civile"), ou seja, a virtude e a participação políticas, assunto enaltecido pelos que desejam ir além da tradição liberal-democrática.
PS - Nesse particular, é elucidativa a composição interna do maior partido de oposição, o PT: uma "esquerda" socialista, uma "direita" republicana e um "centro" hegemônico social-desenvolvimentista. Ou seja, três ingredientes essenciais do socialismo republicano num país economicamente semiperiférico. No seu congresso, o PT perdeu uma oportunidade de dar o salto qualitativo que a sociedade anseia e para o qual, diga-se a seu favor, só ele está preparado. Mas haverá outras.

Fernando Haddad, 36, mestre em economia e doutor em filosofia, é professor de ciência política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (Universidade de São Paulo).


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