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TENDÊNCIAS E DEBATES
Terceiro setor e economia solidária
FERNANDO HADDAD
Um quiproquó paralisa a esquerda.
Uma nova direita resolve empunhar
duas bandeiras caras ao movimento
social progressista: o associativismo e
o cooperativismo. Trata-os pelas alcunhas de terceiro setor e economia solidária. Num pólo político, ONGs comporiam uma dimensão social tida como pública não-estatal. Num pólo econômico, cooperativas de trabalhadores comporiam uma dimensão social
tida como coletiva, ou privada não-individual. Sem cerimônia, a nova direita
apropria-se daquilo com o que só a esquerda parecia poder se comprometer.
Como isso foi possível e o que fazer
diante desse fato novo? Denunciar como retrógrada e abandonar uma agenda defendida pela esquerda nos últimos 200 anos?
Antes de tudo, precisamos explicar o
porquê desse súbito interesse do atual
"reformismo conservador" por essas
formas de organização social. Infelizmente, à guisa de defesa dos legítimos
interesses da sociedade, encontramos
os motivos menos nobres. Paradoxalmente, o associativismo e o cooperativismo estão sendo usados para destruir a proteção jurídica conquistada,
particularmente no segundo pós-guerra, pelos cidadãos sem propriedade.
No plano político, para garantir os
recursos suficientes para remunerar
"convenientemente" os detentores dos
títulos da dívida pública, promove-se
um processo espúrio de terceirização,
deixando a cargo de ONGs a execução
de funções antes consideradas obrigações
do Estado. De várias
maneiras as ONGs
colaboram na solução da propalada
"crise fiscal": seus
funcionários muitas
vezes prestam serviço
voluntário, não recebendo nenhuma remuneração; também
prestam um serviço público, mas sem
direito à aposentadoria pública; e muitas ONGs recebem recursos de agências internacionais dos quais as máquinas estatais não são mais consideradas
dignas etc.
No plano econômico, o objetivo não
é outro senão o mesmo "corte de custos". Aqui, são as cooperativas o instrumento usado para promover a
usurpação de direitos. Em primeiro lugar, os trabalhadores das cooperativas,
considerados sócios e não empregados
do "empreendimento", não estão sujeitos à limitação da jornada de trabalho ou ao salário mínimo da sua categoria. Em segundo lugar, férias, descanso remunerado, FGTS, 13º salário,
entre outros direitos, podem ser facilmente negados ao trabalhador pelo
empresário contratante da cooperativa, que atribui sua atitude aos imperativos do mercado. Por fim, não há indenização pela demissão dos trabalhadores, já que, do ponto de vista legal,
não haveria relação trabalhista entre o
empresário contratante da cooperativa
e a própria cooperativa, mas tão-somente uma relação de direito civil.
A esse respeito, algumas mudanças
legislativas e o Ministério Público muito têm feito para coibir abusos, mas
muitas vezes sem discernimento para
separar o joio do trigo, isto é, as chamadas coopergatos (cooperativas de
fachada) das verdadeiras cooperativas.
São as cooperativas
o instrumento usado para promover
a usurpação
de direitos
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A esquerda começa a
acordar para o problema e esboça uma interessante reação. A
Abong (Associação
Brasileira de Organizações Não-Governamentais) e a CUT acusam o golpe, cujo fundamento num e noutro caso é absolutamente o mesmo, e
movimentam-se na mesma direção.
Em vez de recolher as bandeiras do associativismo e do cooperativismo desfraldadas pela direita, essas duas instituições tomam o único caminho que
sua história de lutas permitiria: o da
politização.
Ao "reformismo conservador" só interessam ONGs e cooperativas despolitizadas. Pois, tão logo se politize uma
ONG, ela passa de braço terceirizado
do poder estatal, disfarçado de poder
público, a importante mecanismo promotor da dimensão deliberativa da democracia, tendo como objetivo primordial a socialização do orçamento
público por meio da democratização
do sistema tributário. Da mesma forma, tão logo se politize uma cooperativa, ela passa de braço terceirizado do
poder do capital, disfarçado de poder
coletivo, a importante mecanismo
promotor da dimensão substantiva da
democracia, tendo como objetivo a socialização da propriedade por meio da
democratização do sistema de crédito.
É dessa forma que a correta ação política da Abong e da CUT (e também
do MST, da Anteag -Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão-, das incubadoras
de cooperativas e bancos populares,
dos conselhos de orçamento participativo etc.) deve ensejar a reapropriação
pela esquerda das históricas bandeiras.
É claro que tudo isso seria enormemente facilitado por um governo de
esquerda. Nessa eventualidade, poderíamos imaginar um projeto de sociedade que, implementado numa escala
à altura dos desafios presentes, John
Stuart Mill não hesitaria em chamar de
socialismo republicano: socialismo
porque recupera a discussão sobre formas alternativas de propriedade, tema
que o neoliberalismo quer sepultar,
impondo-nos a falsa escolha entre a
propriedade estatal e a privada, que,
historicamente, só têm se distinguido
pela forma e não pelo conteúdo; republicano porque revaloriza o viver cívico ("vivere civile"), ou seja, a virtude e
a participação políticas, assunto enaltecido pelos que desejam ir além da
tradição liberal-democrática.
PS - Nesse particular, é elucidativa a
composição interna do maior partido
de oposição, o PT: uma "esquerda" socialista, uma "direita" republicana e
um "centro" hegemônico social-desenvolvimentista. Ou seja, três ingredientes essenciais do socialismo republicano num país economicamente semiperiférico. No seu congresso, o PT
perdeu uma oportunidade de dar o
salto qualitativo que a sociedade anseia
e para o qual, diga-se a seu favor, só ele
está preparado. Mas haverá outras.
Fernando Haddad, 36, mestre em economia e doutor
em filosofia, é professor de ciência política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
(Universidade de São Paulo).
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