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Rui e a questão social
ALMINO AFFONSO
Apesar das solenidades que estão
marcando o sesquicentenário do nascimento de Rui Barbosa, a "questão social" -um dos aspectos mais relevantes de seu pensamento político- continua posta à margem dos debates, se
não mesmo esquecida.
Não creio necessário evocar sua extraordinária contribuição na luta abolicionista, desde a juventude acadêmica, de modo geral reconhecida. O que
me parece imperioso é retirar da sombra a reforma social que ele formula,
como candidato à Presidência, em
1919, no memorável discurso pronunciado no teatro Lírico, no Rio.
Valendo-se de estudos científicos,
bem como de reportagens que desnudavam a realidade social dominante, o
jurisconsulto -afeito aos grandes temas institucionais- cede lugar ao tribuno do povo, detém-se nos "incríveis
requintes de horror" e assume o grande compromisso: "Estou, senhores,
com a democracia social".
A rigor, era a ruptura com o liberalismo que até então encarnara, como ele
justifica: "A concepção individualista
dos direitos humanos tem evoluído rapidamente, com os tremendos sucessos deste século, para uma transformação incomensurável nas noções jurídicas do individualismo restringidas
agora por uma extensão, cada vez
maior, dos direitos sociais".
Naquele discurso -faz 80 anos!-,
Rui Barbosa proclama suas convicções
"maduras ou madurescentes" incorporadas à plataforma presidencial: seguro obrigatório como garantia de indenização por acidentes de trabalho;
igual trabalho, salário igual, assegurando relação igualitária entre homem e
mulher; limitação do trabalho de menores; proibição do trabalho noturno;
restrição do trabalho em domicílio; licença-maternidade; limitação da jornada de trabalho.
Não faltam os que negam a Rui a legitimidade para assumir a bandeira da
reforma social. Seja porque lhe antecedera a doutrina de Evaristo de Morais,
em sua obra pioneira "Apontamentos
de Direito Operário", que remonta a
1905; seja porque, no Parlamento, vozes autorizadas -como a de Maurício
Lacerda- se altearam em defesa da
causa operária, com precedência à sua;
seja porque os trabalhadores no 4º
Congresso Operário Brasileiro, em
1912, no Rio, haviam levantado reivindicações posteriormente constantes da
plataforma de Rui em 1919...
Não resta dúvida de que a reforma social propugnada por Rui Barbosa teve significado pioneiro
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Vale relembrar as
ponderações de
Américo Jacobina Lacombe: "Alguns documentos políticos já
haviam falado em
atenção às classes
proletárias. Certos
governantes haviam
promovido poucas
obras de caráter assistencial. Mas aqui é a
primeira vez em que, numa plataforma política, se revêem posições doutrinárias em face da questão social. E o
que há de espantoso é que fosse feito
por um campeão do individualismo".
De igual modo, Evaristo de Morais Filho, sociólogo festejado, destaca o significado dessa intervenção: "Com o
peso irresistível do seu prestígio falava
Rui da existência de uma questão social entre nós em tom patético, de advertência e de profecia. Estava rompido o encanto. Acabava ele, com a autoridade inconteste de seu nome, de admitir que tínhamos uma questão operária que precisávamos resolver enquanto havia tempo".
Não resta dúvida de que a reforma
social propugnada por Rui teve significado pioneiro. Nenhuma liderança,
nas campanhas presidenciais, ousara
formulá-la; e, depois dele, só em 1930,
na plataforma eleitoral de Getúlio Vargas, as mesmas idéias retornavam ao
proscênio político.
Mais que lhe negarem a primazia, o
que me espanta é dar-me conta de que
a "questão social" não figure reconhecida, com a dimensão que deveria, no
primeiro plano das grandezas de Rui.
Salvo a pobreza de minha desinformação, são poucos os autores que se têm
dedicado ao estudo dessa problemática; cabe recordar João Mangabeira,
Américo Jacobina Lacombe, Luiz Viana Filho, Ernesto Leme
e Evaristo de Morais
Filho. E, ainda assim,
no mais das vezes, os
textos são de uma escassez que desconcerta.
Não faz muito, Boris
Fausto, em excelente
artigo (Folha, 15/11),
no bojo da análise de
um ensaio de Bolivar
Lamounier, mostrava o quanto é
oportuna uma revisão de Rui, aparando eventuais exageros que hoje lhe
desfiguram ou lhe empobrecem a personalidade ou aprofundando aspectos
de maior relevância. Tomara que os
estudiosos não continuem a desconhecer a grandeza da contribuição de
Rui no que se refere à "questão social",
numa redefinição jurídica e política
que ele impôs e que, a rigor, rompia
profundamente com seu passado.
Almino Affonso, 70, é advogado. Foi deputado federal pelo PSB-SP, ministro do Trabalho e da Previdência
Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-85).
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