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Passagem de ano
BORIS FAUSTO
A passagem do ano -um artifício
cronológico da invenção humana-
não deveria nos levar só aos presentes
e cartões, que acabaram se transformando em obrigações estereotipadas.
Este é um bom momento para os balanços, ainda que precários, do passado e para as interrogações, ainda mais
precárias, acerca do futuro. É um bom
momento também para pensar em
questões relevantes.
Como não tenho afinidades com a
transcendência, a questão que me
vem à mente é bem terrena e, como
tudo que é terreno, não tem uma resposta milagrosa. Descartadas as utopias revolucionárias, que produziram
tantos males, estamos diante de um
desafio, em todo o mundo: o de encontrar caminhos para eliminar a pobreza absoluta, ampliar o acesso aos
bens materiais e culturais, reduzir as
desigualdades sociais, incorporar à cidadania desempregados, ou jovens
que nunca tiveram a perspectiva de
um emprego. Diante desse desafio, é
forçoso constatar que a retórica superou em muito, até aqui, a eficácia das
ações.
Se o problema é global, ganha contornos específicos em cada país. Por
exemplo, embora a taxa de desemprego seja maior na Espanha do que no
Brasil, o caso brasileiro é muito mais
grave, tendo-se em conta a rede de
proteção existente em um caso e a
quase desproteção no outro. Não custa recordar também que o Brasil viveu, em anos ainda recentes, um longo período de inflação. As consequências sociais desse fato tornaram-se
transparentes quando o descontrole
inflacionário revelou seus efeitos perversos na distribuição de uma renda já
de si tradicionalmente iníqua.
Daí a necessidade de ter cuidado
com soluções simplistas que, buscando reduzir o impacto da crise, poderiam trazer de volta velhos problemas.
Por outras palavras, em um país nas
condições do nosso, há boas razões
para ter prudência na engenharia de
equilíbrio entre estabilidade e crescimento econômico. Isso não significa
ignorar que sem crescimento -e
crescimento expressivo- estaremos
condenados ao agravamento do quadro social.
Crescer é não só um imperativo de
justiça como também um requisito
básico para a ampliação da cidadania.
Lembro, a propósito, uma frase insólita de John Kenneth Galbraith: "Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de um cidadão quanto a absoluta falta de dinheiro (Mais! de
20/12)".
Comparada com os sonhos de uma
ordem igualitária, imposta a ferro e
fogo, essa afirmação parece modesta e
de um pragmatismo excessivo. Na
verdade, ela envolve todo um programa de reforma social, cujos caminhos
nem sempre são claros, pressupondo,
em qualquer situação, a ação consequente dos homens.
Voltando ao momento da passagem
do ano, ocorre-me lembrar um verso
de Drummond, belo e verdadeiro,
embora os versos não necessitem ser
verdadeiros para ser belos: O último
dia do ano não é o último dia do tempo. Tentemos pois fugir o quanto possível aos atropelos, buscando tomar
maior consciência do mundo, a partir
de nós mesmos.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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