São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 2001

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Política externa: ampliar espaços


Num país com dramática desigualdade econômica e racial, a política externa não pode se descolar dos interesses da população


PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Houve dramáticas mudanças na abordagem do governo brasileiro em relação aos direitos humanos depois da volta à democracia. De uma postura defensiva e negacionista, chegamos a uma cooperação com os organismos multilaterais. O Brasil passou a colaborar para o funcionamento dos mecanismos tanto dos órgãos de tratado como na Comissão de Direitos Humanos da ONU. Na última década, alguns marcos devem ser lembrados.
A peça-chave foi a circular determinando a todas as missões brasileiras a transparência em relação a graves violações de direitos humanos no Brasil e a abertura às organizações internacionais. A ratificação dos instrumentos internacionais de proteção de direitos abriu espaço para a participação brasileira na Conferência de Direitos Humanos, em Viena, em 1993.
O Itamaraty criou um departamento de direitos humanos e temas sociais. Agora o Brasil retoma, com as organizações da comunidade negra, a participação na Conferência Mundial contra o Racismo. (Poderia ser diferente para o terceiro país do mundo em população de afro-descendentes?) Em 1999, foi reconhecida a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Essas mudanças foram simultâneas a iniciativas na esfera interna, como o Programa Nacional de Direitos Humanos, em 1996. Durante os anos 90, desenvolveu-se uma tensão positiva entre o governo federal -propício ao respeito às obrigações internacionais assumidas pelo Brasil- e a omissão de alguns governos da Federação. Foi reativado o Conselho de Defesa dos Direitos Humanos (CDDPH), a mais antiga instituição nacional de direitos humanos, criada em 1964, pelo presidente João Goulart, e constituída a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, em 1999.
Para chegarmos aqui, contribuíram o dinamismo da sociedade brasileira -vide a extraordinária realização do Fórum Social Mundial- e o trabalho competente da diplomacia brasileira.
Poucos países apresentaram relatórios aos órgãos de tratado, desde a convenção do racismo à da tortura, atos transparentes, sem dissimulações de violações. Nas grandes conferências mundiais, o governo foi capaz de integrar as perspectivas (e a presença) da sociedade na agenda brasileira.
Ainda que a formulação de uma política de direitos humanos seja um fato, algo ainda resta a fazer se o Brasil quiser de fato tirar as consequências que decorrem de seus recursos e de nossas contradições (nona potência industrial versus pobreza extrema; Estado de Direito versus pífio acesso à Justiça).
A política externa brasileira deve assumir de vez as responsabilidades mundiais que competem a um "país-baleia" (como diz Ignacy Sachs), em termos de tamanho, população e importância geopolítica, ao lado de Índia e da China. A diplomacia brasileira não pode abarcar seus desafios com mãos de pelica, nominalmente, sem vontade. Deve efetivamente querer fazê-lo.
Nenhuma hesitação pode prevalecer quanto a uma afirmação principista em relação aos direitos humanos: seria inconcebível o Brasil deixar de ter assento na Comissão de Direitos Humanos da ONU ou na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que a política em relação à África seja acanhada e que, diante da globalização, não nos comportemos como protagonistas.
Uma inesperada e promissora ocasião se abre com a chegada de Celso Lafer ao Itamaraty. Poucos têm tantas qualidades intelectuais e condições de aliar uma visão clara de direitos humanos, de comércio internacional, de meio ambiente e de desarmamento.
Numa configuração internacional marcada pela indefinição, ninguém melhor do que Celso para fazer com que o Brasil tire partido de tendências promissoras, como a constituição de uma consciência coletiva plenamente favorável ao respeito aos direitos humanos, à democracia e ao meio ambiente. Lafer irá internalizar definitivamente na diplomacia brasileira a noção de que os direitos humanos não são um sortilégio passageiro, uma opção de uma plêiade de diplomatas que ousam assumir riscos em suas carreiras, mas uma opção irrenunciável e incontornável.
Se olharmos para a enorme experiência de Celso Lafer, tanto à frente da Eco-92 como na chefia da missão do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra, fica claro que o novo chanceler não se imobilizará diante de tendências preocupantes.
Entre essas estão a intensificação de conflitos étnicos, religiosos e de nacionalidades; os riscos do protecionismo e do aumento do abismo entre os países desenvolvidos e os do sul. O Brasil não pode fazer de conta que tudo isso não nos diz respeito. Há alguma dúvida de que teremos de continuar a resistir à Alca e lutar por um Mercosul ampliado?
Num país com dramática desigualdade econômica e racial, a política externa não pode ficar descolada dos interesses da população, em sua maioria privada de uma cidadania plena. Precisamente por termos o melhor e o pior dos mundos, temos mais condições do que a maioria dos países do sul para transcender nossos interesses específicos e incluí-los numa visão abrangente.
Não dá mais para ardilosamente acomodar os interesses nacionais a um acanhado realismo do permissível da conjuntura internacional (delimitado pelo norte, como martelava Severo Gomes). Em vez do permissível, ousar o possível: um esforço contínuo para conquistarmos espaços cada vez mais alargados. Eis o grande desafio que se impõe ao novo chanceler. Celso Lafer tem sensibilidade, generosidade e convicções para realizar essa grande virada.


Paulo Sérgio Pinheiro, 56, é professor titular de ciência política e coordena do Núcleo de Estudos da Violência/Fapesp na USP. É relator especial da ONU para Mianmar (ex-Birmânia).




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