São Paulo, segunda-feira, 29 de janeiro de 2001 |
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Fuzilado na Barão de Limeira
ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR Nas primeiras páginas do romance "A Invenção da Solidão", o autor americano Paul Auster faz uma espécie de inventário da insignificância humana. No livro, um homem visita a casa do pai, que acaba de morrer. Encontra anotações, fotos, meias, objetos pessoais do morto e reflete sobre a brutal desimportância daquilo. Era como se seu pai nunca tivesse existido. Um homem que se casou, teve filhos, trabalhou e comprou uma casa passava a ser irrelevante (talvez o fosse em vida). Sentimento parecido devem ter experimentado as pessoas que visitaram, nos últimos dias, o salão onde até há pouco funcionava o "Notícias Populares". O jornal não existe mais. A empresa que o editava (responsável também pela Folha e pelo "Agora São Paulo") decidiu fechá-lo. A Redação foi desmantelada, carrinhos de supermercado levaram os computadores. Só alguns telefones ainda funcionavam. Em breve talvez seja como se o jornal nunca tenha existido. Mas não pode ser assim. Tive o orgulho de ser editor-chefe do "NP" de 1991 a 1995. Embora ao longo dos anos tenha ocupado cargos mais prestigiosos, não reluto em dizer que meu tempo no "NP" foi o mais o mais rico de minha carreira. Ao lado de colegas brilhantes que vinham da Folha e de outros mais experientes que já estavam no jornal, embarquei na experiência quase suicida de fazer um jornalismo radicalmente popular, mas, por mais demencial que em certos momentos parecesse, sempre jornalismo. A história recente do "NP" tem como ponto de inflexão o ano de 1990. Foi quando o jornal, que perdia circulação, fossilizado em apresentação e em conteúdo, passou por uma ampla reforma gráfica e editorial. Ganhou cor, textos mais modernos e recursos gráficos que o aproximavam dos tablóides britânicos, a principal referência dessa vertente jornalística. Cheguei ao "NP" com o novo projeto já em vigor. Para esse jornal renovado, contrataram-se profissionais de origem mais "burguesa" -com tudo que isso implica de bom e ruim. Em pouco tempo, os "burgueses" perceberam: longe das diretrizes rígidas de um veículo "mainstream" como a Folha, a liberdade editorial era uma tentação. As fotos e a linguagem tornaram-se mais picantes. As vendas subiram proporcionalmente. Houve a grita esperada. Moralistas, guardiães hipócritas dos costumes e, possivelmente, até pessoas bem-intencionadas protestaram contra a ousadia do jornal. Promotores da Infância e da Juventude entraram na Justiça para que o "NP" fosse vendido envelopado, todos os dias, mesmo que a capa trouxesse nada além da reprodução de um crucifixo de Giotto e o Evangelho de São Lucas no original grego. O processo arrastou-se por anos, até uma vitória histórica no Tribunal de Justiça de São Paulo -a primeira a respeito dos limites da imprensa sob a luz da Constituição de 1988. O jornal saiu triunfante, mas, com o tempo, a circulação sofreu. Ao ser fechado, o "NP" vendia muito pouco. Menos do que merecia. Bravo e desbocado, ele rejeitaria que este texto lhe prestasse homenagens lacrimosas. Tentarei evitá-las. Mas gostaria que o leitor soubesse dos profissionais aguerridos e do gosto pela notícia que sempre constatei nas equipes que passaram por ele. No morticínio do Carandiru, no impeachment de Collor, na morte de Senna, no suicídio de Kurt Cobain e em tantos outras horas, viu-se em ação um grupo de jornalistas disposto a enfrentar de igual para a igual a concorrência, mesmo dispondo de condições técnicas e materiais cruelmente inferiores. O "NP" sempre foi o "underdog", jornalismo sem máscaras. Claro que não tivemos só acertos. Houve erros, alguns colossais. Deixo a nossos críticos (que não são poucos) a tarefa de listá-los. Ressalto que, mais do que o fim do jornal em si, os fatos indicam, a meu ver, um rumo burocrático para o jornalismo popular da maior cidade do Brasil. A imprensa popular de sucesso, hoje, é moralista e rabugenta. Tudo o que o "NP" nunca quis. Impossível negar que o jornalismo popular que triunfou em São Paulo tem um importante papel social imediato. A eleição de melhores vereadores, por exemplo, é decorrência direta das denúncias dessa imprensa. Mas acho que sua fórmula se sustenta num voluntarismo salvacionista, o mesmo tipo de indignação rasa que origina figuras como Jânio Quadros. Longe de tudo isso, o "NP" era irreverente, mas sem nunca abdicar do jornalismo. Até nos últimos meses de vida, premiava a concorrência com furos, como o do namoro do jogador Ronaldo com Milene Domingues e, logo depois, o esfriamento das relações do casal. O "NP" toma agora o rumo da história. É como diz Paul Auster, no final de "A Invenção da Solidão": "Foi. Nunca será de novo. Lembre". Álvaro Pereira Jr., 37, foi editor-chefe do "NP" (1991-1995), do Fantástico e chefe de Redação da Rede Globo-SP. Mora em San Francisco (EUA) e colabora com a Rede Globo e a Folha. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Paulo Sérgio Pinheiro: Política externa: ampliar espaços Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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