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São Paulo, quarta-feira, 29 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A educação do novo presidente

MOISÉS NAÍM

George W. Bush chegou à Presidência dos Estados Unidos com várias idéias fixas. Os pacotes de resgate financeiro para países com problemas econômicos seriam má idéia e deveriam ser suspensos. A assistência ao desenvolvimento dos países pobres equivaleria a jogar fora dinheiro dos contribuintes americanos. A participação dos Estados Unidos na reconstrução de países como Somália ou Haiti seria contraproducente. O governo dos Estados Unidos teria não só a chance mas o dever histórico de impor o poder de maneira unilateral, num mundo propenso à anarquia.
A realidade internacional em muito pouco tempo se encarregou de educar Bush e sua equipe. Nem uma única dessas idéias preconcebidas sobreviveu incólume ao teste das restrições que o mundo de hoje impõe ao exercício do poder. Assim, o governo mais poderoso e autônomo do mundo se viu forçado a modificar suas premissas ou agir em sentido totalmente contrário a elas.
A mesma coisa acontecerá com Lula. Na realidade, já está acontecendo. A crise venezuelana, por exemplo, proporcionou ao novo hóspede do Palácio do Planalto algumas lições interessantes.
A mais óbvia delas é que falar de uma política internacional mais ativa para o Brasil é mais fácil do que exercê-la. Os erros da intervenção na Venezuela podem custar muito caro ao Brasil. De fato, por estar preocupado com o emprego de Hugo Chávez, Lula corre o risco de perder muitos empregos para os brasileiros. Isso acontece porque, hoje em dia, as atuações de um país na política mundial não podem ser isoladas de suas atuações no âmbito econômico. Os investidores internacionais que admiram o gabinete econômico de Lula e o que este já falou sobre a economia também podem interpretar mal a proximidade de Lula com Chávez ou com Fidel.
A idéia de que se pode entregar a política econômica a Wall Street e a política internacional ao PT não funciona bem num mundo globalizado e instantaneamente informado. Falar ao mesmo tempo em Davos e Porto Alegre é admirável e desejável. Mas isso não sai de graça: Lula já deve ter descoberto quantas escolas pode construir se a taxa de juros cai um ponto, graças à confiança que ele suscita nos investidores do mundo.
Da mesma maneira, uma aproximação estreita demais com Chávez pode significar muitas escolas a menos aos brasileiros. O dia em que Chávez deixar o poder na Venezuela, a Petrobras, a Odebrecht e outras empresas brasileiras talvez não tenham a mesma facilidade em fazer negócios num país em que o petróleo brasileiro ajudou a enfraquecer a oposição a Chávez. Ou onde Marco Aurélio Garcia, o enviado de Lula a um país obviamente polarizado e à beira de uma guerra civil, deu declarações críticas à oposição, gerando uma manifestação diante da Embaixada do Brasil em Caracas. A realidade é essa; a lição é que a hegemonia não se exerce de graça.


Por estar preocupado com o emprego de Chávez, Lula corre o risco de perder muitos empregos para os brasileiros


Encabeçar um grupo de países ""amigos da Venezuela" foi uma boa idéia do presidente Lula. Tentar excluir os Estados Unidos desse grupo reflete apenas a ingenuidade de um governo novato. Embora a reputação internacional dos EUA de Bush não seja das melhores, sua influência é das maiores.
Outro aprendizado importante tirado dos gestos iniciais do governo Lula em direção à Venezuela é que as categorias tradicionais já não são muito confiáveis. Nos tempos em que vivemos, a ideologia é má conselheira. Um olhar menos ideologizado sobre a situação vigente na Venezuela revela que Chávez preside um governo eleito democraticamente e que discutiu temas importantes e por muito tempo ignorados pelas elites venezuelanas (corrupção e desigualdade). Mas mostra que a mistura explosiva de militarismo, autoritarismo e narcisismo do presidente Chávez o levou a ter o governo mais excludente e corrupto da história moderna da Venezuela.
Antes de tachar a oposição venezuelana de representante das elites corruptas e antidemocráticas que tentaram dar o golpe de Estado injustificável de 2002, teria sido aconselhável questionar o motivo da criação da maior, mais ativa e diversificada coalizão de grupos e forças da história da Venezuela. Esse enorme movimento social, que também inclui dois em cada três venezuelanos pobres, possui um único elemento comum: o desejo de afastar Chávez do poder.
A luta de classes, os pobres contra os ricos, o racismo, a oligarquia protegendo seus interesses próprios, a influência da CIA e outras explicações tão comodamente usadas pelos observadores externos (e explorados por Chávez com grande inteligência) não servem para explicar o que acontece na Venezuela. Não explicam por que Chávez, que tinha mais de 90% de apoio popular, passou a ter menos de 30%. Não explicam por que seus aliados mais próximos se transformaram em seus opositores mais radicais. Nem por que os meios de comunicação, os jornalistas e os intelectuais que o ajudaram a chegar ao poder agora se opõem furiosamente a ele.
A oposição venezuelana não é um movimento político tradicional. É uma mobilização social formada por uma rede de redes que não se reportam a nenhum organismo central, incluindo grupos autônomos de bairros, sindicatos, escolas, agrupações regionais e simples cidadãos que nunca antes tinham participado de política. Não tem líder ou mensagem para a era pós-Chávez. Nem respostas para os problemas do país nem uma estratégia de comunicação inteligente. Também inclui pessoas e grupos com tendências antidemocráticas, assim como políticos oportunistas do passado. Mas isso não é novidade.
O que é novo e que o mundo só agora começa a descobrir é que uma imensa maioria de venezuelanos está disposta a imolar-se para defender seu país do que vê como sendo uma ameaça inaceitável. Isso gera paixão imensa, que transborda nas ruas quase diariamente, apesar de os Círculos Bolivarianos, organizados por Chávez e treinados por cubanos, atacarem os manifestantes e às vezes os assassinarem impunemente.
Essa energia das ruas, pouco organizada e sem líder, mas determinada, encerra uma lição que o presidente Lula faria bem em não ignorar.

Moisés Naím, venezuelano, é editor da revista "Foreign Policy", em Washington. Foi ministro da Indústria e Comércio da Venezuela.
Tradução de Clara Allain


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