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São Paulo, quarta-feira, 29 de janeiro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

FHC e Lula: culturas em colisão

JACOB PINHEIRO GOLDBERG

A campanha eleitoral e o ritual da posse deixaram claro o que de nebuloso existe por atrás deste continente brasileiro em termos de contrastes e confrontos. Os franceses têm uma fórmula para distinguir dois saberes. O da formação acadêmica, ilustração do reconhecimento social, segundo padrões estabelecidos pelo poder institucional da universidade, o "savant". E aquele da experiência direita, a sensibilidade filtrada pela percepção do significado do social e do mundo. A diferença é maior do que entre o doutor e o douto, o titulado e o sábio.
No mergulho de nossa realidade, quem percebeu e genialmente conseguiu unir as duas pontas do universo brasileiro foi Guimarães Rosa. Sofisticado, poliglota e, ao mesmo tempo, humilde, com ouvidos no grande sertão, capaz de adivinhar a complexidade da alma do nosso interior. Interior nos dois sentidos, o geográfico e o psicológico.
Na política, não tivemos ainda quem somasse, numa só personalidade, o reflexo dos dois Brasis, que não se dividem, unicamente, no campo econômico, mas, muito mais, na dimensão cultural. O caipira e o metropolitano, o simples e o complexo (primitivo ou complicado, para os radicais), o conservador e o revolucionário.
Durante oito anos, FHC experimentou a liberdade das implicações infinitas do código apelidado de primeiro mundo ou globalização. O eleitorado julgou. Outro juízo, cético ou crente, caberá aos historiadores. Nesse intervalo, a crítica investiga para captar a sobriedade subjacente e o que a celebridade produziu.
Vinte diplomas de doutor honoris-causa miram a impressionante caravana dos caboclos e cabras que acessam o "site" do poder.


Lula multiplica milhões de Zé-Ninguéns, em todas as classes sociais, nos mais diversos níveis de cultura, e não apenas no Brasil


Na TV, um "reality show" mostra Lula, o protagonista que, ao se exibir, parece farto de ego e ambição, alguém que desperta da inocência para a revelação. Lula multiplica milhões de Zé-Ninguéns e, curiosamente, em todas as classes sociais, nos mais diversos níveis de cultura, e não só no Brasil.
Seus melhores e piores desempenhos se sucedem e intercalam, em ritmo acelerado, um tipo múltiplo de exuberância e serenidade.
Gestos quase simultâneos desarmam tendências catastróficas e aquietam ansiedades sociais.
Na verdade, suas lágrimas inundam as faces do pobre e do rico, num contexto sociológico que promete a libertação do inferno. A fome, o desemprego, o crime, o atraso científico, a corrupção. O "santo guerreiro" contra o "dragão da maldade".
Derrama um sentido em relação a cada cidadão, a cada perdido na multidão, que se torna a metáfora de sua caminhada. A metáfora que empolga é a do "self made man", aquele que se construiu por si. Portanto uma figura individualista e, ao mesmo tempo, capaz de escolher sem medo seus coadjuvantes, que se rendem, sem resistência.
Gênio versátil de energia, Lula zomba das contradições e aparentes dificuldades, e uma dialética original faz com que não se sinta intimidade pela tarefa nem a importância da gente presunçosa.
A nação está suspensa em sua trajetória e acompanha seu almoço com Fidel Castro, tentando adivinhar, na Bovespa, a sobremesa.
As oscilações dos humores partidários criam uma nova identidade, juntando a linguagem do banco de Boston com a de Cidade de Deus.
FHC vai se retirando (quase carrega a faixa presidencial) para o interior da França, de onde vem o marido de Marta Suplicy. Ida e volta para nenhum ficcionista botar defeito.
Um provérbio africano diz que "um pedaço de pau, por mais que flutue na água, nunca se tornará um crocodilo". Esse traumatismo cultural pode resultar em várias possibilidades, que vão da frustração até um novo modelo criativo de poder. Quem sabe o exemplo de Guimarães Rosa possa servir outra vez.
O médico, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, que, ao ouvir o sábio dos tempos imemoriáveis de Minas Gerais, reproduz um idioma genuíno.
E assim, e ao cabo, o conflito se transforma em convergência.

Jacob Pinheiro Goldberg, advogado, é doutor em psicologia pela Universidade Mackenzie e autor de "Monólogo a Dois".


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