São Paulo, quarta-feira, 29 de março de 2006

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ANTONIO DELFIM NETTO

Duplo estelionato eleitoral

O último surto de desenvolvimento brasileiro ocorreu no governo Itamar Franco (1993/94), quando crescemos 5,4% ao ano, com equilíbrio externo. A carga tributária bruta era de 27% do PIB, e a dívida líquida do setor público, 31% -graças ao vigoroso superávit primário de 3,7% ao ano, em média, no período. As reservas internacionais eram de US$ 40 bilhões, correspondentes a um ano de importação.
Restava um problema grave: a imensa taxa de inflação, da ordem de 1.700% ao ano. Depois de uma tentativa fracassada (Plano Cruzado), os mesmos economistas produziram um programa realmente admirável, o Plano Real. Criou-se uma moeda que se autocorrigia, a URV (Unidade Real de Valor). Todos os preços foram liberados e congelou-se a distribuição de renda mais ou menos no nível da disputa que se equilibrava em 1.700% de inflação. Mimetizou-se, assim, uma hiperinflação sem que o país tivesse que sofrê-la. Quando os preços relativos se ajustaram à distribuição de renda (congelada) num nível onde seria pequena a disputa distributiva, bastou repetir o que se fez na Europa depois da Primeira Guerra Mundial: pendurar o equilíbrio durante algum tempo numa taxa de câmbio fortemente administrada até que todos os novos preços relativos e as remunerações se acomodassem.
O Plano Real foi um enorme sucesso no combate à inflação. Quais eram, entretanto, as condições de permanência do sucesso? A construção do absoluto equilíbrio fiscal com corte de despesas e sem aumento excessivo da carga tributária e do endividamento líquido/PIB. Sem isso, era claro que o custo de reduzir a inflação seria a permanente estagnação, porque a sustentação da taxa de câmbio valorizada exigiria uma enorme taxa de juro real.
FHC surfou sobre o Plano Real. Elegeu-se. Imediatamente procurou, com métodos absolutamente heterodoxos, a sua reeleição sem desincompatibilização, o que seria o segundo "estelionato eleitoral". O primeiro residiu no fato que, uma vez eleito, esqueceu a condição essencial: o equilíbrio fiscal. Elevou para 29% a carga tributária bruta e aumentou de 31% para 49% do PIB o endividamento. Não fez o menor esforço para controlar as despesas, reduzindo o superávit primário a zero no primeiro quatriênio. Em apenas quatro anos, acumulamos um déficit em conta corrente da ordem de US$ 100 bilhões! O resultado final foi trágico. Em 1998 (às vésperas da reeleição), o Brasil "quebrou": tivemos de ir correndo ao FMI e, com o chapéu na mão, pedir um socorro de US$ 40 bilhões!
No segundo mandato, as coisas foram um pouco melhores, porque o FMI exigiu um esforço fiscal. Este foi espertamente contornado por FHC, que descarregou o problema sobre o setor privado, aumentando a carga tributária bruta para 32% já em 1999. Puxado pelo nariz, o governo perdeu o controle do câmbio para o "mercado". Instalou-se depois uma nova e melhor política monetária. Mas o fim foi melancólico. Terminamos 2002 com uma inflação de 12,5% e um crescimento de 1,9%. Acumulamos mais US$ 80 bilhões de déficit em conta corrente. Com reservas de US$ 16 bilhões, e o Brasil "quebrado" pela segunda vez, tivemos de voltar ao FMI...
O problema da inflação acabou mal resolvido na octaetéride fernandista pela sua indisposição de fazer as reformas microeconômicas. Em compensação, deixou dois problemas robustos que têm inviabilizado o crescimento econômico: uma carga tributária bruta de 36% e uma dívida líquida/PIB de 56%...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.
@ - dep.delfimnetto@camara.gov.br


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