São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Denúncia vazia

RAUL JUNGMANN


É inevitável que os assentados em um ano só iniciem seu processo efetivo de instalação no exercício seguinte


Há 38 anos o governo federal contabiliza as famílias assentadas pelo Programa Nacional de Reforma Agrária do mesmo modo, que é o seguinte: realizado o registro dos beneficiários, é publicada a sua relação juntamente com o ato de criação do Projeto de Assentamento (PA) no "Diário Oficial" da União.
Claro é que as famílias contabilizadas, nesse momento, não estão sobre a terra, não têm casa, nem infra-estrutura disponível. Mas têm um compromisso, um "contrato" com o poder público, que se obriga a, nos meses e anos subsequentes, acessar esses e outros bens, conforme previsto em lei. Tanto que, com base nesse compromisso, podem eles acionar o governo na Justiça, para obter o que lhes é de direito. Agregue-se a isso o fato de que a quase totalidade das publicações de PAs no "Diário Oficial" se dá no último trimestre do ano, por motivos do ciclo de obtenção de terras e regime de liberações financeiras -estas com elevada concentração no mesmo último trimestre.
Em consequência, é inevitável que os assentados em um ano só iniciem o seu processo efetivo de instalação no exercício seguinte. E, mesmo assim, após vencidas as etapas de aprovação do novo Orçamento e sua sanção, publicação dos quadros de detalhamento de despesas, edição do decreto de programação orçamentária e financeira etc. Em síntese, dificilmente antes de maio ou junho do ano subsequente o acesso real à habitação e à infra-estrutura, por exemplo, dar-se-á para uma família assentada no ano anterior. Esse quadro foi agravado em 2001, por uma greve dos engenheiros agrônomos do Incra, que perdurou de setembro a novembro.
Assim, quando fizemos o balanço das famílias assentadas do ano passado, tivemos o cuidado ético de afirmar, perante toda a mídia nacional e internacional presente, que das 102 mil famílias assentadas, "18.972 se encontravam em fase de decreto ou subsequentes", com cópias por escrito dessa afirmação para todos. Em outras palavras, não tinham chegado sequer ao estágio de registro de beneficiários e criação do PA no "Diário Oficial" da União.
Por que se fez isso? Em primeiro lugar, porque já o vínhamos fazendo nos anos anteriores. O balanço de 2000 contém o mesmo esclarecimento, sendo que o número era ainda maior -aproximadamente 32 mil famílias (esse número foi definido durante rodada de negociações coordenada pela CNBB naquele ano, com a participação do MST, e se encontra registrado em ata de domínio público). Em segundo, porque o Incra, ao discriminá-las, firmava o compromisso de que, mesmo que efetivadas no ano seguinte, seriam contabilizadas na meta do ano anterior, 2001. E, em terceiro e último, pelo imperativo moral da ética e da transparência, presente em todas as nossas ações.
No dia 21 último, esta Folha, em reportagem assinada por Rubens Valente e Eduardo Scolese, entendeu que o governo federal tinha maquiado o balanço das famílias assentadas em 2001, para mais, em aproximadamente 12 mil! Prova da fraude? Essas famílias não estavam sobre a terra, não tinham infra-estrutura, habitação etc. Entenda, caro leitor: a matéria em questão nos acusava de fraude por computarmos 12 mil famílias que não estavam sobre a terra, sendo que nós, de público, tínhamos assumido que não estavam! E que o seu número era não 12 mil, mas 18 mil!
Portanto só teriam acesso aos bens e recursos previstos no ano subsequente -de resto, conforme todos esses quase 40 anos do Programa Nacional de Reforma Agrária! Embasando e confirmando a "fraude", dois blocos de testemunhos. Um, de superintendentes que, enviesadamente, "confirmavam" a pressão e a maquiagem induzidas por Brasília. Todos, sem exceção, desmentiram, por escrito, tais declarações. Se dessas supostas declarações inseridas na reportagem existirem fitas gravadas, que as divulguem. E que entrevistados e entrevistadores dividam os custos da desmoralização. Não é problema nosso.
Já o segundo bloco de testemunhos é sintomático: Gerson Teixeira era, até ontem e durante anos, um assalariado do Partido dos Trabalhadores, pago para destruir, invalidar, contestar tudo que o atual governo faz na área fundiária. Consta da reportagem como doutorando em economia. Recentemente, elaborou texto para a liderança do PT "denunciando" a maquiagem dos números do governo, similar em tudo à reportagem em questão. A Abra, a qual Teixeira preside, é braço auxiliar do MST, que controla o seu Conselho de Direção.
Por fim, Bernardo Maçano, o professor da Unesp que se diz "horrorizado" com a fraude, é o intelectual "oficial" do MST. Mas, leitor, não procure por essas informações, pois elas não constam do texto. Seguramente, não foram consideradas informações relevantes para a formação de um juízo isento por você...
Entre 96 e 98, todos os grandes jornais brasileiros tinham setoristas que cobriam a reforma agrária, diariamente. Profissionais como Abnor Gondim, Eliana Lucena, Edson Luiz e Rodrigo Tavares nos fiscalizavam sem tréguas. Mas entendiam do assunto.
A eles rendo uma homenagem, ainda que tardia. Nenhum deles jamais cometeria tal estupidez ou equívoco conceitual, tomando o momento da contabilização das famílias pelo processo de efetivação das mesmas em um projeto de assentamento.
A entrevista que dei aos citados repórteres, publicada no dia 24 do corrente (Brasil, pág. A6), foi adulterada pelos mesmos em várias passagens.
Raul Jungmann, 50, foi presidente do Ibama (1995-96), ministro extraordinário de Política Fundiária (1996-98) e ministro do Desenvolvimento Agrário (1999-2002).


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