São Paulo, segunda-feira, 29 de abril de 2002

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Explicação vazia

RUBENS VALENTE e EDUARDO SCOLESE


Ao longo de quatro meses, os repórteres coletaram documentos do governo, balanços do Ministério do Desenvolvimento Agrário


O ex-ministro Raul Jungmann, em seu artigo enviado à Folha, distorce dados e versões para dar alguma resposta pública à série de reportagens da Folha que mostrou que os balanços da reforma agrária vêm sendo inflados, ao contabilizarem assentamentos que não saíram do papel, terrenos vazios e áreas em que não há infra-estrutura básica. Na retórica de Jungmann, famílias que ainda não estão na terra são consideradas "assentadas", o que resolve o problema fundiário com uma simples manobra semântica.
Ao longo de quatro meses, os repórteres coletaram documentos do governo, balanços do Ministério do Desenvolvimento Agrário, ouviram superintendentes e chefes do Incra e viram os locais de supostos assentamentos. Mas, para Jungmann, nada disso existiu. As reportagens não passam de falácias estimuladas pela esquerda e pelo MST.
A denúncia foi tão "vazia" que o seu substituto no Ministério, José Abrão, mandou mudar as regras de balanço e criar uma comissão para averiguar os dados de 2001, após a publicação da primeira reportagem.
Jungmann segue não querendo falar da realidade, para induzir o leitor a erro. Uma das peças usadas pela Folha para a comprovação da inflação de números veio do ""Manual dos Assentados". Que é do Incra, o órgão que executa a reforma agrária, seja no mundo real, seja no de Jungmann. Para o ex-ministro, o manual é "uma bobagem".
Ora, o manual leva a assinatura de Jungmann. Lá está dito que um assentamento, para ser aceito como tal, necessita de uma série de obras de infra-estrutura. Sem elas, não há assentamento. Isso não é uma tese da reportagem, é uma regra do próprio Incra. O ex-ministro considera ter assentado 600 mil famílias desde 1995. Mas agora sabemos que por assentado Jungmann considera também o simples cadastrado ou "beneficiário" que, na definição do Incra, é quem está ainda sem receber nenhum centavo ou metro quadrado de terra.
Jungmann diz que o governo contabiliza famílias assentadas do mesmo modo há 38 anos. No mundo real, não é assim. Até 93, por razões políticas, o governo não dispunha de leis boas que pudessem acelerar a reforma agrária. O rito sumário, criado no governo de Itamar Franco, deu condições para que esse quadro mudasse. Não se colocavam antes "balanços de assentamentos" como peças importantes de propaganda maciça do governo.
Para o ex-ministro, basta o projeto de assentamento estar publicado no "Diário Oficial" para que o governo possa trombetear mais um grupo de agricultores assentados. Se tudo der certo, a família só vai receber seus créditos no ano seguinte. Se, como é bem comum ocorrer, o dinheiro e a infra-estrutura não chegarem e as famílias não estiverem no local por esse motivo, é apenas um detalhe contábil no mundo de Jungmann. Questionado, o ex-ministro faz uma concessão: os incomodados, escreveu, "podem acionar o governo na Justiça para obter o que lhes é de direito".
As reportagens colheram exemplos desse desvio. Mas, para o ministro, isso também é vazio. Ele poderia, então, ter lido o relatório feito pelo próprio Incra em Mato Grosso: faltam 8.000 casas e 7.000 assentados nos assentamentos do Estado. Se todos seguirem o conselho de Jungmann, a Justiça terá muito trabalho. E, então, quantas famílias "assentadas" pelo governo estão de fato morando nos assentamentos do país? "O Incra não tem como dizer", afirma o presidente do órgão, Sebastião Azevedo. Esse é o mundo real. No de Jungmann, é um pequeno detalhe contábil.
O ex-ministro também mistura dados imiscíveis. Afirma que a Folha errou ao dizer que o balanço de 2001 foi inflado em 12 mil famílias. Seriam 18 mil, e em "fase de decreto de desapropriação ou subsequentes", segundo nota de rodapé pinçada de um gráfico secundário.
O que ele quer dizer é que, sim, essas famílias na fila podem ser incluídas como "assentadas". E seriam ainda em maior número do que o publicado. Mas erra: as 12 mil famílias citadas pela Folha se cadastraram pelos Correios, não fazendo parte, nem no mundo real nem no de Jungmann, de nenhuma fase de assentamento. De uma só vez, o ex-ministro não responde a um deslize e ainda entrega outro.
A linha final de desqualificação das reportagens também não se sustenta. Dizer que a reportagem se baseia em informações dos professores Bernardo Mançano e Gerson Teixeira, a serviço do PT e do MST, não é verdadeiro. Eles apenas comentaram as reportagens, na chamada repercussão do caso feita após a primeira publicação. Mas opiniões contrárias não são bem-vindas por Jungmann.
A entrevista que o ministro diz ter sido "adulterada" está gravada e transcrita. Será simples checar seu conteúdo. Se não tivesse batido o telefone na cara dos repórteres e deixado de atendê-los durante os oito dias em que foi procurado, o ex-ministro poderia falar mais sobre os seus números. Mas prefere fazê-lo em artigo. É seu direito, ainda que as desqualificações e ofensas pessoais que permeiam o texto não ajudem muito a explicar o ""maior programa de reforma agrária do mundo", em que assentados não são assentados e balanços são desmentidos por notas de rodapé.


Rubens Valente, 32, jornalista, é repórter do "Painel". Eduardo Scolese, 27, jornalista, é repórter da Agência Folha.

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