UOL




São Paulo, terça-feira, 29 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Duas ilusões ruinosas

O Brasil precisa crescer. Tudo o mais, em matéria de economia, é secundário. Serve apenas para desviar o foco do verdadeiro problema. Duas ilusões empobrecedoras, porém, preenchem o espaço do debate nacional a respeito da retomada do crescimento: o fiscalismo e o mercantilismo. Tratemos de dissipá-las. Tarefa delicada porque cada uma delas é vizinha de proposições acertadas.
O fiscalismo, a economia política dos rendidos, é a aceitação integral da cartilha dos mercados financeiros: não só austeridade fiscal mas também tudo o que coloque o governo de mãos atadas diante do capital financeiro, a começar pela renúncia a políticas anticíclicas, bem como ao aproveitamento máximo do poder de barganha do governo na política de juros. O objetivo da autonomia do Banco Central é institucionalizar essa abdicação. Foi para o mesmo fim que serviu, em outra época, o lastreamento da moeda em ouro. O prêmio seria a confiança dos endinheirados, dentro e fora do país, e, portanto, a expansão do investimento. O fiscalismo exprime descrença na capacidade de um Estado nacional periférico, como o nosso, de traçar políticas de desenvolvimento que contemplem o imperativo da confiança financeira sem se render a ele. Parece ser apenas realismo fiscal, mas não é. De fato, precisamos temporariamente de superávits fiscais, não para agradar aos interesses financeiros, mas para poder, em seguida, enquadrá-los. Resgatemos do fiscalismo só o que for útil para inverter-lhe os objetivos, desatando as mãos do governo e dos produtores. Joguemos o resto fora.
Contra o fiscalismo levanta-se, entre nós, o mercantilismo: tudo pela exportação, para poder superar o constrangimento externo ao crescimento. O primeiro equívoco é de conjuntura internacional: não seria possível escolher hora pior para iniciar ciclo de crescimento baseado em exportações. O segundo erro é de país: o Brasil está imprensado entre economias de trabalho barato e economias de alto saber. Por isso produz pouco do que o mundo queira comprar. Só sairá dessa prensa por meio de revolução produtiva, baseada em novo regime de coordenação entre políticas públicas e iniciativa privada e em democratização de oportunidades econômicas e educativas. O terceiro engano é de teoria: se o mercantilismo tivesse razão, o jeito seria afundar os navios que nos trazem importações. O mercantilismo aproveita e distorce compromisso legítimo: aumentar a integração da economia brasileira no mundo em termos que convenham a nossa estratégia nacional. A tarefa, porém, não é exportar; é produzir mais e melhor, dando a dezenas de milhões de brasileiros desequipados condições para participar do esforço produtivo e para consumir-lhe os produtos. O aumento das exportações virá de quebra.
A julgar pela discussão brasileira, os fiscalistas e os mercantilistas são inimigos mortais. Que nada. Apesar de divergirem a respeito da melhor maneira de administrar a flutuação do câmbio, são parceiros na desorientação e na ruína do país. Tanto assim que o destino do atual governo, como foi o de seu antecessor, é combinar o projeto dos rentistas com o projeto dos caixeiros-viajantes.
Contra isso, precisamos de luz e de calor. Luz para demarcar o itinerário de um produtivismo democratizante. Calor para reunir os interessados em trabalhar e em produzir que acabarão por derrubar, na próxima etapa da política nacional, a ditadura do dinheiro e da ilusão.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: O DNA da violência
Próximo Texto: Frases

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.