São Paulo, terça-feira, 29 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Símbolo ou projeto?

LUIZ HILDEBRANDO PEREIRA DA SILVA

Em princípios de maio, em reunião do Conselho Científico e Técnico (CCT) presidida pelo próprio presidente Lula, o presidente da SBPC propôs a criação de bolsas de doutorado para a Amazônia. Segundo ele, seria possível formar e fixar 5.000, doutores em seis anos, utilizando apenas 30% dos fundos setoriais contingenciados, ou seja, um total de R$ 900 milhões.
Dois elementos explicam a recepção favorável à proposta: o descontingenciamento em si é uma velha reivindicação e seu atendimento seria muito bem vindo; e o desenvolvimento de C&T na Amazônia, visto como prioridade nacional, aglutina em torno de si a maioria da comunidade pensante do país. A recepção entusiasta se explica, portanto, pelo conteúdo simbólico e pelo forte apelo àquelas duas reivindicações.


Existem poucos núcleos qualificados de pesquisa na região amazônica capazes de receber jovens para capacitá-los


Porém o presidente da SBPC publicou um artigo na Folha, dia 20/5, convertendo a idéia em proposta formal, reduzindo a R$ 15 milhões as "suaves prestações mensais" (do total dos R$ 900 milhões) necessárias para a formação e a fixação dos 5.000 doutores em seis anos ("Guindastes para a Amazônia", "Tendências/Debates", pág. A3).
Nesses termos a proposta não se sustenta. Tentarei explicar por quê: para formar 5.000 doutores em seis anos, é preciso produzir anualmente de mil a 1.500 doutores e manter o fluxo contínuo de 5.000 bolsistas. Considerando o valor da bolsa em R$ 1.300, a despesa seria de R$ 6,5 milhões, o que parece compatível com os R$ 15 milhões, pois deixa um saldo de R$ 8,5 milhões. Acontece, entretanto, que 5.000 doutorandos necessitam ao menos de 1.500 a 2.000 orientadores, que não existem nas instituições da Amazônia. Mesmo que uma parte dos bolsistas fosse realizar seu doutorado no Sul ou no Sudeste, com as desvantagens assinaladas pelo diretor do Inpa em artigo do "Jornal de Ciências", teríamos que recrutar para a Amazônia ao menos mais mil orientadores, que consumiriam mais R$ 3 milhões mensais em salários.
Ora, um orientador não se ocupa apenas de seus doutorandos. Ele desenvolve pesquisas próprias e necessita de equipe para isso -técnicos, estudantes de iniciação, mestrado e pós-doutorado e pessoal administrativo-, que, em seu conjunto, consumiriam mais R$ 3 milhões entre bolsas e salários. O saldo fica reduzido, nesse caso, a R$ 2,5 milhões.
Além disso, é preciso considerar que, dos doutores formados anualmente, ao menos um terço se impõe como candidato a pós-doutorado, no país ou no exterior, pois apenas com pós-doutorado pode-se realmente pretender formar pesquisadores capazes de conduzir autonomamente equipes de pesquisa. Esses pós-doutores em formação se encarregariam de consumir em bolsas o saldo restante dos R$ 2,5 milhões. Assim não restaria, portanto, nenhum recurso para infra-estrutura, equipamentos, atividades de funcionamento, gestão e manutenção nos laboratórios dos orientadores, essenciais à formação dos doutores. Não restariam tampouco recursos para fixação dos mil a 1.500 doutores e 400 pós-doutores formados e para a instalação de suas respectivas equipes.
Mas não é pelo aspecto financeiro que a proposição é inviável.
O problema central é que existem poucos núcleos qualificados de pesquisa e de elaboração e transmissão de conhecimento científico na região amazônica capazes de receber jovens para capacitá-los. Além disso, os núcleos existentes sofrem de grande deficiência em infra-estrutura e meios de funcionamento. Nas condições atuais, mal podem receber poucas centenas de jovens locais para pós-graduação e não têm condições de atrair jovens de outras regiões do país, apesar do fascínio que exerce no imaginário dos jovens a Amazônia, com sua beleza, seus imensos recursos naturais e potencial econômico.
Como fazer para que esse fascínio se transforme em atrativo? Atrativo para os jovens da região, do resto do país e do mundo? Atrativo também para cientistas, técnicos e intelectuais competentes e formados do país e do exterior, para que venham participar do esforço de desenvolvimento cientifico e tecnológico sustentável da Amazônia?
Para que isso se transforme em realidade, é necessário todo um processo: a definição de objetivos e prioridades, o reforço da infra-estrutura de universidades e institutos; a garantia de recursos para funcionamento e desenvolvimento de atividades de pesquisa e formação; o apoio seletivo às equipes competentes existentes na região, para que a multiplicação se faça a partir dos núcleos de qualidade; a criação de instrumentos e meios de apoio à instalação e fixação de novas equipes de qualidade nas especialidades prioritárias ainda deficientes.
Esse processo, que é naturalmente complexo e demorado, pode ser simbolizado por uma frase: 5.000 doutores para a Amazônia. Mas, para elaborar o processo e levá-lo à prática, necessita-se de todo um esforço de análise, reflexão e elaboração no qual a SBPC, ao lado da Academia Brasileira de Ciências e das instituições acadêmicas e de pesquisa da Amazônia, deve trabalhar para formulá-lo e pressionar governo, Congresso e sociedade para sua concretização.

Luiz Hildebrando Pereira da Silva, 75, professor titular de parasitologia da USP, diretor do Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais de Rondônia, é membro da Academia Brasileira de Ciências e do CCT.


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