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TENDÊNCIAS/DEBATES
Numeração de CDs ou outras coisas?
JÚLIO MEDAGLIA
Já vai longe o tempo em que a comunidade da MPB agia integrada, revelava inteligência crítica e provocava a
movimentação cultural, social e até política. Recentemente, porém, viu-se a
classe unir-se, com acirradas polêmicas,
e fazer ser aprovada uma lei pelo Congresso Nacional.
Não, não se trata de uma lei que edifica as bases para a música do novo milênio ou que contribuirá para a melhoria
do repertório recente veiculado pela indústria da comunicação eletrônica, caracterizado por uma tortuosa década de
pseudopagode (todo ele junto não valendo uma pausa de uma música de
Cartola) ou de falsa "música caipira"
(na realidade, um melodoloroso bolerão brega, feito sob medida para bordéis
de cais de porto).
A nova lei obriga as gravadoras a colocarem um número sequencial nos CDs,
os quais serão rubricados, um a um, pelo artista. Segundo os líderes da polêmica e a deputada -no texto de justificativa da lei-, uma verdadeira "rotina de
fraudes" se dá no setor. Com a nova lei,
as gravadoras não poderão mais "mentir" aos artistas quanto ao número de
CDs efetivamente comercializados.
Ora, se esses artistas trabalhassem
com empresas de fundo de quintal, onde o dono faz tudo e depois liga e informa o que "conseguiu vender", poder-se-ia imaginar manipulação de dados.
Mas as figuras que vimos nos debates
são artistas sob contrato com gigantescas multinacionais do disco, distribuídas pelo mundo; empresas sem cara,
sem dono, com centenas de funcionários anônimos divididos em departamentos, que compram matéria prima,
forjam produtos, comercializam, distribuem, pagam salários e impostos, remetem lucros ao exterior, muito bem
taxados e controlados pelo fisco etc.
Pergunta-se como se daria, na prática,
a camuflagem de números nesse conglomerado empresarial? Além do mais,
os diretores das "multis" aqui no Patropi assinam um compromisso de idoneidade com a matriz ao assumirem seus
cargos e também só fazem aquilo que a
presidência determina através de cartilhas que recebem anualmente. Se fossem mentir para o artista, portanto, isso
aconteceria por ordem lá de cima.
Como, naqueles países, o direito autoral é mais sagrado que a própria Virgem
Maria, não passa pela cabeça de ninguém, nem como piada de mau gosto,
imaginar um "big boss" em Nova York
arquitetando como camuflar o número
de CDs vendidos do Zequinha das Candongas. Além do mais, essas megaempresas ou holdings que representam, algumas delas, meia dúzia de selos por
aqui, são obrigadas a passar por auditorias externas rigorosas, feitas por companhias especializadas, que detectam os
mínimos deslizes, erros ou fraudes.
E isso não por razões éticas, e sim porque elas têm que prestar contas em detalhes da manipulação da grana a seus
acionistas. Por outro lado, da boa imagem da marca dessas empresas no
mundo dos negócios é que depende o
valor de suas ações nas bolsas internacionais. Por isso, quando Michael Jackson lançasse seus discos no Brasil, não
precisaria passar um mês aqui rubricando os CDs, com um fisioterapeuta
ao lado, para não ter tendinite, pois
existem profissionais especializados fazendo o controle.
A problemática que envolve essa relação criação artística/indústria cultural é
infinitamente mais complexa que a simples distorção de alguns dados. A grande indústria da comunicação eletrônica
é, isto sim, responsável pelo horror em
que se encontra o nível da programação
de nossas emissoras e música gravada.
Plantada no país com a mais rica diversidade musical do planeta, na medida
em que essa indústria da comunicação
eletrônica cresce, mais ela baixa o nível
da qualidade artística do que produz.
A grande indústria da comunicação eletrônica é responsável pelo horror em que se encontra o nível da programação
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Incompetente para fazer um trabalho
de prospecção inteligente e sensível na
talentosa e musical alma brasileira, nela
identificando os pólos criativos e transformando-os em objetos artísticos de
nível, preferem, para manter a frenética
velocidade de vendas e o gigantismo
empresarial, inventar monstrengos descartáveis que desovam com grande rapidez os produtos.
Basta dizer que, atualmente, da verba
de produção, gasta-se apenas 20% na
parte artística e 80% para entulhar o
mercado com essa mercadoria que não
faz jus ao grande passado musical deste
país. Aliás, como música virou mercadoria barata e descartável, dez empresas
compram 80% da produção das gravadoras e a distribui em supermercados,
como se fosse água sanitária ou algo assim, levando à falência as casas de discos, negócio praticamente em extinção.
Outra coisa. As "cinco irmãs" do disco, sabendo da imensa riqueza de nossa
música, poderiam colocá-la nos mercados do mundo, como fazem as "sete irmãs" do petróleo com o produto árabe.
Mas nada. Se algo vai para fora, é por
iniciativa do artista ou seu empresário.
Eu não acredito que as grandes gravadoras falseiem borderôs, mesmo porque, de forma mais sutil e legal, elas ficam, indevidamente, com boa parte do
direito autoral do artista. Seus lobbies
conseguiram colocar na legislação brasileira o direito de elas ficarem com 50%
do direito de intérprete quando uma
música é transmitida, o chamado direito conexo. Ora, o que gera o direito na
execução pública é a interpretação do
artista, e não o que a gravadora faz. Ela
só documenta e forja um produto industrial, que não gera direito nenhum.
Estes e mil outros aspectos que me
vêm à mente é que eu gostaria de ver
sendo discutidos pela intelligentsia da
MPB, que enfrentou, galhardamente e
produzindo obras primas, a ditadura
militar e, agora, finge desconhecer as
imposições ainda mais perversos dessa
outra ditadura, a mercadológica. Não se
discute, exceto em botequins, nem mesmo o grande assalto que sabemos existir
na área da música gravada, este sim gigantesco e que acontece não por determinação de um presidente de empresa
em Nova York, e sim pela ação de piratas. Eles comercializam livremente no
viaduto Santa Ifigênia (com as devidas
propinas e vistas grossas das autoridades) mais de 50% dos CDs e vídeos VHS
produzidos ilegalmente no país.
Aliás, essa é uma boa razão para numerar discos e vídeos e até colocar etiquetas holográficas que identificam o
produto honesto e de qualidade. Não só
para controle da produção e pagamento
de royalties, mas para evitar que o consumidor financie a pirataria no Brasil.
O senhor não acha, senhor presidente
da República?
Júlio Medaglia, 59, é maestro.
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