São Paulo, segunda-feira, 29 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cadastro positivo

RODRIGO TERRA

Sem nunca ter atrasado um pagamento, ninguém está, porém, imune de ser considerado mau pagador. Além dos serviços de proteção ao crédito tradicionais, que registram o nome de quem tenha deixado de honrar com sua obrigação em dia, para proteger do beiço de quem trabalha com venda a crédito, começam a pulular mecanismos de defesa do fornecedor que, por critérios não necessariamente ligados à falta de pagamento, presumem que o consumidor não passa de um caloteiro.
É o caso do sistema adotado por shoppings do Rio de Janeiro que mantém em rede o sistema de pagamentos de seus lojistas: quem quer que já tenha passado, digamos, cinco cheques numa mesma tarde de compras, será surpreendido pela recusa do sexto antes de assiná-lo, pois o respectivo talão "deve ter sido roubado". Ou também do "cadastro de clientes preferenciais", que, em todo o Brasil, quem paga em cheque é obrigado a preencher para que seja aceito, declinando diversos dados pessoais (data de nascimento, endereço, números de telefones etc.). Ou ainda da presunção de que menos de seis meses como correntista é sinônimo de trapaça.
Nada de errado em verificar, antes de aceitar um cheque, se o respectivo emitente tem ficha corrida nos serviços de proteção ao crédito, telecheque etc., os chamados "cadastros negativos". Eventual constatação do fato é indício de que o pagamento a ser efetuado possa não passar de fantasia. Outra coisa é mecanismo que presuma que alguém seja pilantra porque exerceu seu direito de pagar em quantos cheques preferiu pelas compras que fez ou exigir do consumidor que renuncie a seu direito à privacidade para que seja aceito seu pagamento. São os cadastros positivos.
É que, dos dois personagens na relação de consumo, o fornecedor é quem detém as armas para se defender. O consumidor, a quem o Estado deu tratamento especial por ser a parte vulnerável da relação, recebeu instrumentos exclusivos para reequilibrar essa relação. Um deles foi a facilitação de sua defesa em juízo, de modo que suas alegações são presumidas verdadeiras até prova em contrário, que caberá ao fornecedor (inversão do ônus da prova).
Esse sistema, porém, funciona em sentido inverso quando quem quer pagar com cheque tem que passar pelo crivo do cadastro positivo. Em vez de o comerciante ter de provar ou pelo menos acenar com algum indício real que o autorize a desconfiar da idoneidade do consumidor, presume, sem admitir prova em contrário nem direito de defesa, sua qualidade de pulha por causa de alguma coisa que não tem nada a ver com a sua incapacidade de ser pontual no pagamento de suas dívidas.


A Carta garantiu que é inviolável o direito do indivíduo à intimidade e à vida privada, que inclui o direito à honra


Já por isso, esse tipo de controle é incompatível com o Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor, inaugurado pela Constituição da República e regulamentado pelo Código de Defesa do Consumidor. Mas não é só. Tratar quem tem a honra ilibada e faz questão de repetir que paga suas contas em dia da mesma maneira que quem dá pouca importância para o crédito alheio redunda em discriminação e rompimento de um dos princípios mais caros da Ordem Constitucional de qualquer democracia do planeta: a isonomia real, que, para valer, significa tratar desiguais desigualmente.
Além disso, a Carta também garantiu que é inviolável o direito do indivíduo à intimidade e à vida privada, que inclui o direito à honra e à imagem das pessoas -mas o cadastro positivo não o preserva, tanto por tachar alguém de mau pagador sem fundamento nenhum, como por exigir dados pessoais para que o consumidor exerça o direito de pagar em cheque.
Essas conquistas da civilização, como a igualdade de todos perante a lei e o direito de não ser considerado culpado até prova em contrário, de repente se transformam em letra morta para varejistas que, a pretexto de se defenderem de atropelos até certo ponto previsíveis por suas atividades negociais, desarticulam, na prática, o mecanismo de defesa que o Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor reservou à parte fraca da relação de consumo, estressando, porém, a anomalia que o tratamento diferenciado deveria corrigir.


Rodrigo Terra é promotor do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.



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