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TENDÊNCIAS/DEBATES
Cadastro positivo
RODRIGO TERRA
Sem nunca ter atrasado um pagamento, ninguém está, porém, imune
de ser considerado mau pagador. Além
dos serviços de proteção ao crédito tradicionais, que registram o nome de
quem tenha deixado de honrar com sua
obrigação em dia, para proteger do beiço de quem trabalha com venda a crédito, começam a pulular mecanismos de
defesa do fornecedor que, por critérios
não necessariamente ligados à falta de
pagamento, presumem que o consumidor não passa de um caloteiro.
É o caso do sistema adotado por shoppings do Rio de Janeiro que mantém em
rede o sistema de pagamentos de seus
lojistas: quem quer que já tenha passado,
digamos, cinco cheques numa mesma
tarde de compras, será surpreendido pela recusa do sexto antes de assiná-lo,
pois o respectivo talão "deve ter sido
roubado". Ou também do "cadastro de
clientes preferenciais", que, em todo o
Brasil, quem paga em cheque é obrigado
a preencher para que seja aceito, declinando diversos dados pessoais (data de
nascimento, endereço, números de telefones etc.). Ou ainda da presunção de
que menos de seis meses como correntista é sinônimo de trapaça.
Nada de errado em verificar, antes de
aceitar um cheque, se o respectivo emitente tem ficha corrida nos serviços de
proteção ao crédito, telecheque etc., os
chamados "cadastros negativos". Eventual constatação do fato é indício de que
o pagamento a ser efetuado possa não
passar de fantasia. Outra coisa é mecanismo que presuma que alguém seja pilantra porque exerceu seu direito de pagar em quantos cheques preferiu pelas
compras que fez ou exigir do consumidor que renuncie a seu direito à privacidade para que seja aceito seu pagamento. São os cadastros positivos.
É que, dos dois personagens na relação
de consumo, o fornecedor é quem detém as armas para se defender. O consumidor, a quem o Estado deu tratamento
especial por ser a parte vulnerável da relação, recebeu instrumentos exclusivos
para reequilibrar essa relação. Um deles
foi a facilitação de sua defesa em juízo,
de modo que suas alegações são presumidas verdadeiras até prova em contrário, que caberá ao fornecedor (inversão
do ônus da prova).
Esse sistema, porém, funciona em sentido inverso quando quem quer pagar
com cheque tem que passar pelo crivo
do cadastro positivo. Em vez de o comerciante ter de provar ou pelo menos
acenar com algum indício real que o autorize a desconfiar da idoneidade do
consumidor, presume, sem admitir prova em contrário nem direito de defesa,
sua qualidade de pulha por causa de alguma coisa que não tem nada a ver com
a sua incapacidade de ser pontual no pagamento de suas dívidas.
A Carta garantiu que é inviolável o direito do indivíduo à intimidade e à vida privada, que inclui o direito à honra
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Já por isso, esse tipo de controle é incompatível com o Sistema Nacional de
Proteção ao Consumidor, inaugurado
pela Constituição da República e regulamentado pelo Código de Defesa do Consumidor. Mas não é só. Tratar quem tem
a honra ilibada e faz questão de repetir
que paga suas contas em dia da mesma
maneira que quem dá pouca importância para o crédito alheio redunda em discriminação e rompimento de um dos
princípios mais caros da Ordem Constitucional de qualquer democracia do planeta: a isonomia real, que, para valer,
significa tratar desiguais desigualmente.
Além disso, a Carta também garantiu
que é inviolável o direito do indivíduo à
intimidade e à vida privada, que inclui o
direito à honra e à imagem das pessoas
-mas o cadastro positivo não o preserva, tanto por tachar alguém de mau pagador sem fundamento nenhum, como
por exigir dados pessoais para que o
consumidor exerça o direito de pagar
em cheque.
Essas conquistas da civilização, como
a igualdade de todos perante a lei e o direito de não ser considerado culpado até
prova em contrário, de repente se transformam em letra morta para varejistas
que, a pretexto de se defenderem de
atropelos até certo ponto previsíveis por
suas atividades negociais, desarticulam,
na prática, o mecanismo de defesa que o
Sistema Nacional de Proteção ao Consumidor reservou à parte fraca da relação
de consumo, estressando, porém, a anomalia que o tratamento diferenciado deveria corrigir.
Rodrigo Terra é promotor do Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro.
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