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São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O princípio ausente

DEMÉTRIO MAGNOLI

O debate sobre a ação afirmativa tem evidenciado a fragilidade do princípio da igualdade política dos cidadãos no Brasil. O pensamento jurídico "progressista", em particular, parece propenso a subordinar esse princípio aos direitos coletivos, sem perceber que ele é o único fundamento sólido para as políticas de inclusão social.
O sistema de cotas para ingresso nas universidades tem sido defendido com base no interesse em reduzir as desigualdades, promover a diversidade étnico-racial e combater a exclusão. Tais argumentos sustentariam políticas estruturais, como um aumento dramático de investimentos no ensino público, e também medidas de ação afirmativa, como a criação de cursos pré-vestibulares gratuitos destinados a estudantes carentes ou grupos excluídos. Mas, de modo arbitrário, prefere-se vinculá-los ao sistema de cotas, uma política específica que fere o princípio da igualdade formal dos cidadãos.
Politicamente, os vestibulares constituem uma ilha de modernidade no oceano do patrimonialismo brasileiro. As bancas avaliam provas de candidatos cujas identidades desconhecem, atribuindo notas baseadas no mérito acadêmico. Não existem "indicações" ou apadrinhamentos. A filiação partidária e as posturas ideológicas não interferem nos resultados. Nenhuma pressão corporativa pode aprovar ou reprovar um candidato. Os "amigos do rei" não dispõem de vantagens: no dia do vestibular, o filho do ministro, juiz ou deputado torna-se um "plebeu", como todos os demais.
O sistema de cotas ameaça submergir essa ilha de igualdade formal, destruindo o princípio do mérito acadêmico que regula o ingresso nas universidades. Sob o império das cotas, um branco pobre que obteve nota suficiente para ingresso pode ter sua vaga ocupada por um negro de classe média que obteve notas mais baixas. A "justificativa" da flagrante violação da igualdade entre os indivíduos é um raciocínio sobre as desigualdades entre grupos sociais, que nesse caso é impertinente, pois a ação afirmativa reiterou as vantagens conferidas pela renda. Ou, alternativamente, é um discurso sobre a "reparação" pelos anos de escravidão do tataravô imaginário do negro de classe média, que transforma metafisicamente o branco pobre em representante dos proprietários de cativos e o negro de classe média em representante dos escravos.
A suposição de que as cotas reduzem a exclusão costuma ser esgrimida para legitimar a violação da igualdade de direitos individuais. Mas essa suposição não se sustenta. As cotas inoculam um "fator racial" na carreira dos profissionais, estigmatizando todos os negros e mulatos com a suspeita de favorecimento acadêmico e, portanto, prejudicando-os no mercado de trabalho. No fundo, as cotas reintroduzem, pela porta dos fundos, a crença racista segundo a qual existe alguma relação entre a capacidade intelectual e a cor da pele.
Martin Luther King sonhava com o dia em que as pessoas seriam julgadas pela força do seu caráter, não pela cor da sua pele. O sistema de cotas frustra esse sonho, pois divide e avalia os cidadãos em função da cor da pele. As cotas são particularmente nocivas para os negros e mulatos, pois, sob pretextos de justiça social, inscrevem o princípio discriminatório no texto legal. A experiência dos Estados Unidos evidencia a falácia do argumento de que o crescimento do número de "afrodescendentes" diplomados confere poder aos negros. Lá, as cotas para negros nas universidades convivem harmoniosamente com as "cotas" que os tribunais reservam para os negros pobres nas prisões e no corredor da morte.


As políticas compensatórias são inconsistentes com os fundamentos do pensamento de esquerda


O pensamento ultraliberal enxerga a sociedade como conjunto de consumidores. O princípio da igualdade se realiza na esfera do mercado, como direito universal ao consumo de mercadorias e à venda da força de trabalho. Foi nessa moldura que surgiram as políticas compensatórias, cuja finalidade consiste em corrigir desvios exagerados do mercado através da concessão de benefícios ou privilégios a grupos sociais específicos. As cotas constituem um elemento das políticas compensatórias e, por isso mesmo, são consistentes com a manutenção ou o aprofundamento das desigualdades de renda.
O pensamento de esquerda enxerga a sociedade como conjunto de cidadãos. O princípio da igualdade se realiza na esfera da política, por meio de lutas sociais que geram direitos. A igualdade política e jurídica dos cidadãos é o pilar da República democrática, pois ela assegura que novos direitos adquiram caráter universal. As políticas compensatórias são inconsistentes com os fundamentos do pensamento de esquerda, pois se baseiam na negação da universalidade dos direitos.
No Brasil, o sistema de cotas foi adotado como política oficial por um governo de esquerda. O paradoxo, que sinaliza a crise do pensamento de esquerda, também tem explicação na conjuntura política. As cotas podem ser aplicadas junto com a produção de superávits fiscais cavalares, a redução dos gastos públicos e o aumento do desemprego. Funcionam como política de resultados imediatos e servem como cortina de fumaça para esconder o "apartheid social" na escola, que decorre do desinteresse do Estado em reerguer um sistema de ensino público de qualidade.
A política de cotas tem tudo para ser aprovada. Reúne o vasto arco político que vai da esquerda sem rumo até a direita ultraliberal. As suas vítimas sociais são os pobres, de todas as cores, para os quais está reservada uma escola pública em ruína.

Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo - Geografia e Política Internacional".


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