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TENDÊNCIAS/DEBATES
O princípio ausente
DEMÉTRIO MAGNOLI
O debate sobre a ação afirmativa
tem evidenciado a fragilidade do
princípio da igualdade política dos cidadãos no Brasil. O pensamento jurídico
"progressista", em particular, parece
propenso a subordinar esse princípio
aos direitos coletivos, sem perceber que
ele é o único fundamento sólido para as
políticas de inclusão social.
O sistema de cotas para ingresso nas
universidades tem sido defendido com
base no interesse em reduzir as desigualdades, promover a diversidade étnico-racial e combater a exclusão. Tais
argumentos sustentariam políticas estruturais, como um aumento dramático
de investimentos no ensino público, e
também medidas de ação afirmativa,
como a criação de cursos pré-vestibulares gratuitos destinados a estudantes carentes ou grupos excluídos. Mas, de
modo arbitrário, prefere-se vinculá-los
ao sistema de cotas, uma política específica que fere o princípio da igualdade
formal dos cidadãos.
Politicamente, os vestibulares constituem uma ilha de modernidade no
oceano do patrimonialismo brasileiro.
As bancas avaliam provas de candidatos
cujas identidades desconhecem, atribuindo notas baseadas no mérito acadêmico. Não existem "indicações" ou
apadrinhamentos. A filiação partidária
e as posturas ideológicas não interferem
nos resultados. Nenhuma pressão corporativa pode aprovar ou reprovar um
candidato. Os "amigos do rei" não dispõem de vantagens: no dia do vestibular, o filho do ministro, juiz ou deputado
torna-se um "plebeu", como todos os
demais.
O sistema de cotas ameaça submergir
essa ilha de igualdade formal, destruindo o princípio do mérito acadêmico que
regula o ingresso nas universidades. Sob
o império das cotas, um branco pobre
que obteve nota suficiente para ingresso
pode ter sua vaga ocupada por um negro de classe média que obteve notas
mais baixas. A "justificativa" da flagrante violação da igualdade entre os indivíduos é um raciocínio sobre as desigualdades entre grupos sociais, que nesse
caso é impertinente, pois a ação afirmativa reiterou as vantagens conferidas
pela renda. Ou, alternativamente, é um
discurso sobre a "reparação" pelos anos
de escravidão do tataravô imaginário
do negro de classe média, que transforma metafisicamente o branco pobre em
representante dos proprietários de cativos e o negro de classe média em representante dos escravos.
A suposição de que as cotas reduzem a
exclusão costuma ser esgrimida para legitimar a violação da igualdade de direitos individuais. Mas essa suposição não
se sustenta. As cotas inoculam um "fator racial" na carreira dos profissionais,
estigmatizando todos os negros e mulatos com a suspeita de favorecimento
acadêmico e, portanto, prejudicando-os no mercado de trabalho. No fundo,
as cotas reintroduzem, pela porta dos
fundos, a crença racista segundo a qual
existe alguma relação entre a capacidade intelectual e a cor da pele.
Martin Luther King sonhava com o
dia em que as pessoas seriam julgadas
pela força do seu caráter, não pela cor da
sua pele. O sistema de cotas frustra esse
sonho, pois divide e avalia os cidadãos
em função da cor da pele. As cotas são
particularmente nocivas para os negros
e mulatos, pois, sob pretextos de justiça
social, inscrevem o princípio discriminatório no texto legal. A experiência dos
Estados Unidos evidencia a falácia do
argumento de que o crescimento do número de "afrodescendentes" diplomados confere poder aos negros. Lá, as cotas para negros nas universidades convivem harmoniosamente com as "cotas" que os tribunais reservam para os
negros pobres nas prisões e no corredor
da morte.
As políticas compensatórias são inconsistentes com os fundamentos do pensamento de esquerda
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O pensamento ultraliberal enxerga a
sociedade como conjunto de consumidores. O princípio da igualdade se realiza na esfera do mercado, como direito
universal ao consumo de mercadorias e
à venda da força de trabalho. Foi nessa
moldura que surgiram as políticas compensatórias, cuja finalidade consiste em
corrigir desvios exagerados do mercado
através da concessão de benefícios ou
privilégios a grupos sociais específicos.
As cotas constituem um elemento das
políticas compensatórias e, por isso
mesmo, são consistentes com a manutenção ou o aprofundamento das desigualdades de renda.
O pensamento de esquerda enxerga a
sociedade como conjunto de cidadãos.
O princípio da igualdade se realiza na
esfera da política, por meio de lutas sociais que geram direitos. A igualdade
política e jurídica dos cidadãos é o pilar
da República democrática, pois ela assegura que novos direitos adquiram caráter universal. As políticas compensatórias são inconsistentes com os fundamentos do pensamento de esquerda,
pois se baseiam na negação da universalidade dos direitos.
No Brasil, o sistema de cotas foi adotado como política oficial por um governo
de esquerda. O paradoxo, que sinaliza a
crise do pensamento de esquerda, também tem explicação na conjuntura política. As cotas podem ser aplicadas junto
com a produção de superávits fiscais cavalares, a redução dos gastos públicos e
o aumento do desemprego. Funcionam
como política de resultados imediatos e
servem como cortina de fumaça para
esconder o "apartheid social" na escola,
que decorre do desinteresse do Estado
em reerguer um sistema de ensino público de qualidade.
A política de cotas tem tudo para ser
aprovada. Reúne o vasto arco político
que vai da esquerda sem rumo até a direita ultraliberal. As suas vítimas sociais
são os pobres, de todas as cores, para os
quais está reservada uma escola pública
em ruína.
Demétrio Magnoli, 44, é doutor em geografia humana pela USP e editor do jornal "Mundo -
Geografia e Política Internacional".
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