UOL




São Paulo, terça-feira, 29 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O trabalho é maior do que as crises

RUY ALTENFELDER

Primeiro foi o verbo? Não, primeiro foi o trabalho, iniciado com o advento primitivo da capacidade do Homo sapiens de manejar a natureza para garantir sua sobrevivência e dominar as demais espécies. Ou seja, trabalhar, na verdade, é o substrato -ou o próprio verbo- da essência humana, um dos reflexos condicionados do atávico instinto de sobrevivência. Por isso mesmo trata-se de direito antropológico.
Essas reflexões são oportunas no momento em que os indicadores do primeiro semestre sinalizam crescimento econômico aquém do esperado em 2003, redução do valor médio dos salários e persistência dos elevados índices de desemprego. Tudo conspira contra a necessária criação de milhões de postos de trabalho no país, a mais natural e eficiente alternativa de inclusão social. Num cenário de desemprego, cresce geometricamente a demanda social pelo Estado e pelo terceiro setor, criando-se um gargalo hoje já acima do limite da capacidade de atendimento.
O desemprego também implica efeitos colaterais muito negativos em toda a sociedade, afetando a auto-estima dos que estão sem trabalho, prejudicando as famílias e comprometendo o exercício da cidadania. Até mesmo nas empresas, em especial quando faltam sinergia e ética, agravam-se a competição e a insegurança. Os estudos comprovam que, em épocas de crise, aumenta a incidência das chamadas doenças profissionais. Nesses casos, a origem antropológica nobre do gesto de trabalhar é atropelada pela etimologia latina do verbo, que vem de "tripaliare", que significa torturar com o "tripalium", antigo instrumento de martírio físico.
Lamentavelmente, é preciso admitir que, ao longo dos séculos -e até hoje- a ação essencial de trabalhar também faz jus ao termo latino, pois nem sempre se desenvolveu à luz da dignidade e da justiça. Ou seja, da deplorável escravidão, presente em vários períodos da história, às transformações fulminantes do mundo contemporâneo, o trabalho teve um tratamento dicotômico, entre a ética e a exploração, a despeito dos sistemas econômicos. Inclusive em Estados socialistas, nos quais, em tese, a ditadura do proletariado deveria ser a base da justiça social, houve e há processos de extrema exploração indevida da força do trabalho.


Com a prevalência do sistema da economia de mercado, as empresas tornaram-se o principal vetor da justiça social


Com a prevalência do sistema da economia de mercado, as empresas tornaram-se o principal vetor da justiça social, pela redistribuição do capital por meio dos salários. Há países do Primeiro Mundo em que a massa salarial já responde, em média, por 60% das rendas nacionais. Isso demonstra que empreender é o caminho mais viável para tornar menos estratificada a sociedade humana. Assim, é de fundamental importância que se estimule a produção, reduzindo seus custos -que continuam muito altos no Brasil.
É preciso, como está sendo atualmente discutido pela nação, encontrar alternativas para reduzir a carga de tributos contida na proposta de emenda constitucional em trâmite no Congresso. Além disso, o Brasil deve persistir na meta de revisão das relações trabalhistas, encontrando alternativas adequadas, benéficas para empresas e trabalhadores, a fim de reduzir os encargos de quem paga os salários e ampliar a renda líquida de quem os recebe. Essa lição de casa não deve mais ser adiada.
Por outro lado, é preciso ponderar que a recessão e problemas como o anacronismo da legislação econômica podem ser duradouros, mas passarão. Assim, não se pode permitir que momentos de retração do nível de atividade e de desemprego alto, como o vivido pelo Brasil, deteriorem as relações trabalhistas. É necessário que empresas, seus dirigentes, executivos, técnicos e todos os recursos humanos possam emergir da crise fortalecidos pela união em torno do esforço de superação das dificuldades. Boas empresas e profissionais talentosos, atuando com coesão, ética e sinergia, são muito maiores do que os problemas efêmeros. Esta é a fórmula mais eficaz de sucesso dos negócios na economia contemporânea, inclusive para sobreviver às crises.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 64, advogado, é presidente do Instituto Roberto Simonsen. Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (Governo Alckmin).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Demétrio Magnoli: O princípio ausente

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.