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São Paulo, sexta-feira, 29 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As anacrônicas instituições internacionais

GILBERTO DUPAS

Para além das crises cíclicas recorrentes da economia mundial nestas últimas décadas, a integração dos grandes países da periferia ao mercado global induzida por um discurso hegemônico, centrado nos benefícios do livre mercado, das privatizações e do rigor monetário, tem levado a maioria desses países a um novo impasse. Reforçam-se os antigos contornos de dependência que nos levam a retomar, em novas bases, os conceitos de centro e periferia. Incluo nesses países, entre outros, Brasil, México, Argentina, Turquia, Indonésia e Tailândia, todos eles com PIB superior a US$ 120 bilhões e mais de 25 milhões de habitantes, com massa crítica para estarem no jogo global.
Mais do que em qualquer outro período da história econômica, as tentativas de retomar o crescimento econômico e minimizar a concentração da renda são hoje severamente constrangidas pela total anomia dos mercados financeiros e dos capitais voláteis, pela perda de capacidade regulatória das instituições internacionais e pela baixa condição de governança do país hegemônico mundial. Acresça-se a essa lista o enfraquecimento dos Estados nacionais e, finalmente, a acumulação de déficits crônicos nos balanços externos dos grandes países da periferia que se abriram à lógica dos mercados. Eles descobriram rapidamente que estavam condenados a importar mais do que conseguiriam exportar -além de terem de lutar com um crescente protecionismo dos países centrais, padecem de grandes dificuldades de competitividade sistêmica e dependem, para agregar valor às suas exportações, de difíceis negociações com as cadeias produtivas lideradas pelas grandes corporações globais.
Cada uma das instituições internacionais concebidas no pós-guerra em Breton Woods, bem ou mal, até meados dos anos 1990, havia conseguido acomodar as crises iniciadas a partir das duas décadas douradas encerradas com o fim da paridade dólar-ouro em 1971. Agora, no entanto, parecem atônitas diante das novas realidades e impasses surgidos neste início de século.
Está aí o diretor do Banco Mundial para o setor privado, Michael Klein, admitindo que "certamente há muito exame de consciência sendo feito no momento" sobre o resultado das privatizações impostas, goela abaixo, como a pílula mágica que garantiria aumento de eficiência, redução das tarifas e melhora da competitividade sistêmica daqueles grandes países da periferia.



A OMC finalmente reconhece que a abertura econômica pode ter efeitos negativos nos países em desenvolvimento

O "Wall Street Journal" lembrou que a maioria das empresas privatizadas está em dificuldades, os investidores estão pulando fora e os "consumidores, sentindo-se enganados, cada vez mais associam privatização com tarifas mais altas", provocando protestos violentos. Mesmo o setor de telecomunicações, considerado a jóia da coroa, está claudicando devido à queda da renda da população. Depois de todo esse leite derramado, o jornal comenta que a diretoria do BM prefere agora a tese de que não importa mais ser o controle privado ou estatal, o que interessa é que ele seja eficiente". "Tudo depende de quão politicamente aceitáveis são as tarifas", faz coro o presidente do IFC, agência do BM que financia o setor privado, com o ar "blasé" de quem anuncia o descobrimento da pólvora no século 21.
Já a OMC finalmente reconhece, pela primeira vez, em documento oficial, que a abertura econômica pode ter efeitos negativos nos países em desenvolvimento, inclusive agravando as desigualdades sociais. As evidências estão aí desde 1998 e por muitos foram apontadas -no meu caso, já o fiz na primeira edição de "Economia Global e Exclusão Social". Em meio a esse rápido mea culpa, apressa-se o órgão internacional a lembrar, no entanto, os sucessos da China e da Malásia, esquecendo que esses casos são totalmente atípicos. A China, por dezenas de razões, inclusive porque parte do seu sucesso ocorreu em razão da implantação de medidas condenadas pela OMC. A Malásia porque, como a China, conseguiu exportar produtos de alto valor adicionado. Mas, persistindo em não dar o braço a torcer, o relatório corre a afirmar que, apesar dos inúmeros fracassos, não há dúvida de que "economias mais abertas tendem a ter maior controle sobre a corrupção".
Finalmente o FMI -após ter que enfrentar críticas ácidas, acusado de agravar a crise asiática dos anos 90 com suas recomendações ultra-ortodoxas e abandonar a Argentina à sua própria sorte, em meio a um inferno decorrente de medidas adotadas que foram então elogiadas pela própria instituição- tem que aguentar um neoconvertido Joseph Stiglitz, cada vez mais rebelde. Muito envolvido com a formulação inicial dessas políticas, como vice-presidente do Banco Mundial por vários anos, ele as acusou de gerar "uma paz de cemitério" após descobrir seus efeitos perversos. Agora, para desconforto do governo Lula, declara que vê com bons olhos a política atual da Argentina, de conflito com o FMI, insinuando que o Brasil deve considerar alternativas quando da renovação do acordo ora vigente.
Esses são sintomas de uma complexa crise institucional. Ela se agrava pelo momento de perplexidade mundial diante das atitudes unilaterais norte-americanas, de exercício de seu poder global, que ferem fundo os conceitos de hegemonia e governabilidade global, já que exercitam a imposição, e não a busca, do consenso.

Gilberto Dupas, 60, economista, é coordenador-geral do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP, presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e autor de "Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado" (Paz e Terra), entre outras obras.


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