São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Eu e a brisa

RIO DE JANEIRO - Gore Vidal dividiu a humanidade entre os que amam Roma e os que a detestam. Fidel Castro, mais prático, dividiu a espécie humana entre aqueles que fumam charuto com anel ou sem anel. Esqueceu os que não fumam charuto. Na opinião dele, quem não fumava charuto não merecia pertencer à humana espécie.
Adotando o radicalismo de Gore Vidal e de Fidel Castro, prefiro dividir homens e mulheres entre aqueles que têm medo do vento e aqueles que não o temem. Durante anos, não conseguia explicar este medo ao vento, não ao vendaval que destrói casas e pessoas, mas ao simples vento que muitas vezes não passa de uma brisa suave, inofensiva e casta.
Numa epígrafe complicada, Guimarães Rosa descobriu que o diabo está no meio do redemoinho, o "demo" bem visível no meio da palavra e nos redemoinhos que a tradição popular associa à presença do diabo.
Não temo o diabo, mas tenho medo do vento. Ele bate portas e janelas, faz balançar as cortinas, levanta a poeira do chão -é um ser invisível, que existe física e moralmente, alterando a ordem e a quietude das coisas.
Milagres e sortilégios vários costumam ser precedidos por uma brisa, e nunca se sabe se o vento traz boas ou más notícias, mas sempre traz alguma coisa. Daí a expressão: que bons ventos o trazem? Pior do que os bons ventos são os ventos contrários que nos levam a caminhos equivocados.
Setembro antigo, num dia de sol, tudo calmo no universo, Mila e eu passeávamos no Arpoador quando uma rajada de vento deslocou o toldo azul de uma barraquinha que vendia milho verde. O toldo passou sobre nossas cabeças, como um fantasma inesperado e ridículo.
Mila tinha pavor do vento, quis pular para o meu colo sem suspeitar que eu precisava do colo dela. O toldo caiu na areia da praia, o medo e o susto duraram pouco. Mas nada no mundo, e em nós, ficou como antes.


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