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São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2003

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IGOR GIELOW

Bêbados de sangue

Em 1920, recém-saído das trincheiras, o alemão Ernst Jünger escreveu: ""Nós deixamos salas de aula, bancos e mesas escolares, e poucas semanas de instrução nos uniram em um grande corpo ardendo em entusiasmo. Tendo crescido numa era de segurança, nós todos tínhamos uma nostalgia pelos grandes perigos inusitados. A guerra nos tomou como uma bebida forte. Foi sob uma salva de flores que nós saímos, bêbados de rosas e sangue".
Jünger, controverso veterano da Primeira Guerra Mundial que morreu em 1998 aos 102 anos, descrevia a hoje pisada história de como os jovens europeus se lançaram à carnificina de 1914 inicialmente com volúpia, só para depois descobrir o horror da morte em massa, a morte mecanizada.
A ""era da segurança" da qual Jünger se ressentia foi o último grande período desmilitarizado da Europa, iniciado no Congresso de Viena (1815) com o desmantelamento das forças napoleônicas, e encerrado com a conflagração de 1914. Em seu relato, o escritor transpareceu a ingenuidade pela qual foi acusado, e posteriormente inocentado, de apologia nazi-nietscheana.
De todo modo, estamos longe de uma ""era da segurança", presumida ou não. Para os mais jovens, sem lembranças familiares diretas dos tempos das Grandes Guerras a incutir-lhes o espírito antimilitarista, conflitos fratricidas nos Bálcãs, África, Oriente Médio e Ásia fazem parte da dieta diária. Com o advento da Al Qaeda e da Doutrina Bush, o inventário de barbarismos só tende a aumentar. Bali, Casablanca, Istambul. Férias tranquilas só na Bahia -não, talvez nem lá.
Vivemos um renascimento do militarismo. O Pentágono tem um orçamento recorde aprovado para 2004. Tente entrar nos EUA com um alicate de unha no bolso para descobrir a abrangência da ""guerra ao terror".
Sintomaticamente, a ""pessoa do ano" de 2003 da revista ""Time" foi o ""soldado americano". Foi ele, e não George W. Bush, que enfrentou as balas enferrujadas dos fedayins. Deu sangue. Obviamente, fica combinado que não se fala dos milhares de ""danos colaterais".
Há então alguma semelhança entre esse combatente da ""Time" e o jovem naïve de 1914 que deixou a ""era da segurança" para trás com entusiasmo?
A resposta mais fácil é não. Não há filas de gente implorando para congelar em Bagram ou brincar de alvo móvel em Tikrit. Pela primeira vez, soldados em ação foram à TV criticar seus chefes. Na lógica mercadológica vigente, o que atrai um combatente no século 21 é a chance de uma carreira. Nos EUA, um recruta ganha R$ 6.000 mensais, chamativos para constituir os inéditos 37% de negros e hispânicos, para ficar em dois grupos desfavorecidos, no Exército do país em 2001.
Mas há outros fatores, esmiuçados pelo principal historiador militar contemporâneo, o britânico John Keegan. Para ele, em sua obra-prima ""Uma História da Guerra", o combatente forma laços tribais com seus companheiros que traem um certo atavismo da violência humana.
É ainda argumentável que a guerra trivializou-se, ganhou contornos de videogame a ser jogado por alguns jovens desmiolados. Como Keegan em seu livro de 1993 ainda não tinha os elementos da guerra pós-moderna para trabalhar, a questão da motivação atual fica em aberto.
Mas uma coisa é certa. Se Jünger via um século de paz às suas costas, a ""pessoa do ano" da ""Time" tem quase outros cem anos ""bêbados de sangue" para impregnar o caráter de sua ação, de um jeito ou de outro.


Igor Gielow é secretário de Redação da Sucursal de Brasília.


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