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IGOR GIELOW
Bêbados de sangue
Em 1920, recém-saído das trincheiras, o alemão Ernst Jünger escreveu: ""Nós deixamos salas de aula, bancos e mesas escolares, e poucas semanas de instrução nos uniram em um grande corpo ardendo em entusiasmo. Tendo crescido numa era de segurança, nós todos tínhamos uma nostalgia pelos grandes perigos inusitados. A guerra nos tomou como uma bebida forte. Foi sob uma salva de flores que nós saímos, bêbados de rosas e sangue".
Jünger, controverso veterano da Primeira Guerra Mundial que morreu
em 1998 aos 102 anos, descrevia a hoje
pisada história de como os jovens europeus se lançaram à carnificina de
1914 inicialmente com volúpia, só para depois descobrir o horror da morte
em massa, a morte mecanizada.
A ""era da segurança" da qual Jünger
se ressentia foi o último grande período desmilitarizado da Europa, iniciado no Congresso de Viena (1815) com
o desmantelamento das forças napoleônicas, e encerrado com a conflagração de 1914. Em seu relato, o escritor
transpareceu a ingenuidade pela qual
foi acusado, e posteriormente inocentado, de apologia nazi-nietscheana.
De todo modo, estamos longe de
uma ""era da segurança", presumida
ou não. Para os mais jovens, sem lembranças familiares diretas dos tempos
das Grandes Guerras a incutir-lhes o
espírito antimilitarista, conflitos fratricidas nos Bálcãs, África, Oriente
Médio e Ásia fazem parte da dieta diária. Com o advento da Al Qaeda e da
Doutrina Bush, o inventário de barbarismos só tende a aumentar. Bali, Casablanca, Istambul. Férias tranquilas
só na Bahia -não, talvez nem lá.
Vivemos um renascimento do militarismo. O Pentágono tem um orçamento recorde aprovado para 2004.
Tente entrar nos EUA com um alicate
de unha no bolso para descobrir a
abrangência da ""guerra ao terror".
Sintomaticamente, a ""pessoa do
ano" de 2003 da revista ""Time" foi o
""soldado americano". Foi ele, e não
George W. Bush, que enfrentou as balas enferrujadas dos fedayins. Deu
sangue. Obviamente, fica combinado
que não se fala dos milhares de ""danos
colaterais".
Há então alguma semelhança entre
esse combatente da ""Time" e o jovem
naïve de 1914 que deixou a ""era da segurança" para trás com entusiasmo?
A resposta mais fácil é não. Não há
filas de gente implorando para congelar em Bagram ou brincar de alvo móvel em Tikrit. Pela primeira vez, soldados em ação foram à TV criticar seus
chefes. Na lógica mercadológica vigente, o que atrai um combatente no
século 21 é a chance de uma carreira.
Nos EUA, um recruta ganha R$ 6.000
mensais, chamativos para constituir
os inéditos 37% de negros e hispânicos, para ficar em dois grupos desfavorecidos, no Exército do país em
2001.
Mas há outros fatores, esmiuçados
pelo principal historiador militar contemporâneo, o britânico John Keegan.
Para ele, em sua obra-prima ""Uma
História da Guerra", o combatente
forma laços tribais com seus companheiros que traem um certo atavismo
da violência humana.
É ainda argumentável que a guerra
trivializou-se, ganhou contornos de
videogame a ser jogado por alguns jovens desmiolados. Como Keegan em
seu livro de 1993 ainda não tinha os
elementos da guerra pós-moderna para trabalhar, a questão da motivação
atual fica em aberto.
Mas uma coisa é certa. Se Jünger via
um século de paz às suas costas, a
""pessoa do ano" da ""Time" tem quase
outros cem anos ""bêbados de sangue"
para impregnar o caráter de sua ação,
de um jeito ou de outro.
Igor Gielow é secretário de Redação da Sucursal
de Brasília.
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