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São Paulo, quinta-feira, 30 de janeiro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Sopa no mel

Quando o governo Fernando Henrique reclamava que, sem as reformas previdenciária e fiscal, o Estado brasileiro continuaria quebrado e a produção econômica manietada, estava a serviço do pérfido neoliberalismo. Quando o governo Lula diz e faz a mesma coisa, está dando os passos iniciais para mudar o modelo que herdou e que não pode descartar da noite para o dia.
Quando o governo anterior mantinha a taxa de juros nos níveis mais elevados do planeta, estava a serviço dos bancos e da agiotagem internacional. Quando o novo governo eleva ainda mais os juros básicos da economia, está eliminando a desconfiança que restava nos mercados e dando provas de condução responsável da economia.
Quando o antigo governo usava todo o poder da máquina para debelar resistências no Congresso, estava praticando política fisiológica para se perpetuar no poder. Quando o governo instalado faz a mesmíssima coisa, está mostrando competência e habilidade políticas. Por maiores que sejam a credulidade popular e a hipnose publicitária, tudo tem limites: cedo ou tarde a máscara cai.
Quantas eleições mais serão necessárias até ficar claro que compromissos de campanha são promessas ao léu? Quando será matizado -já que erradicar parece impossível- esse sebastianismo nacional que, de tempos em tempos (Tancredo, Collor, Lula), gera a alucinação coletiva de mudar "tudo o que está aí"? Ilusão nada inofensiva, pois logo se converte em frustração raivosa e busca do próximo salvador.
No caso presente, o entusiasmo acrítico tem raízes robustas. Tendo chegado pela primeira vez ao poder, depois de tantas perseguições e ostracismos, a esquerda reluta em abandonar suas fantasias. Precisa acreditar no caráter "progressista", "transformador" do novo governo. Os atrativos do poder e a longa prática do "duplipensar" (tal como Orwell chamou o raciocínio dos primeiros parágrafos acima) ajudam.
A direita, por sua vez, tem toda razão para estar sem medo de ser feliz. O resultado das urnas saiu melhor do que a encomenda: em vez de um presidente autocrata e problemático, cheio de idéias próprias, sobreveio um governo que mantém as linhas de força do malanismo no essencial, dando-lhe porém nova legitimidade, novo fôlego, novas aparências e símbolos.
Não há surpresa no apoio da mídia televisiva, que é o que conta em termos de massas, ao governo do PT. Por sua natureza como veículo, a televisão apóia qualquer governo, sobretudo se for popular, mais ainda se não agride o andamento dos negócios. A maioria dos profissionais que atua nos "aparelhos ideológicos do Estado" tem extração petista: sopa no mel do consenso.
A latitude decisória dos governos, sempre restrita, é mais exígua do que nunca. A transição continua e deverá prosseguir por vários anos. Se isso é bom ou ruim, depende de juízo de valor de cada um. Mas quando surgir a palavra de ordem "Fora Lula", democraticamente empregada contra FHC, não tenha dúvida: é golpe!


Otavio Frias Filho escreve nesta coluna às quintas-feiras.


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