São Paulo, sexta, 30 de janeiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Banco da Terra e a questão fundiária


A mudança é tal que, em certos casos, financiar a compra de terras, é mais vantajoso do que desapropriá-las
RAUL JUNGMANN

A Câmara aprovou, na semana passada, o Banco da Terra. Na verdade, é um fundo para financiar, a longo prazo, terra e projetos de assentamento para trabalhadores rurais sem terra e agricultores familiares com terra insuficiente para seu sustento. Com lastro inicial de R$ 1 bilhão, o novo fundo tem sua história ligada ao Plano Real.
Foi, sem dúvida, a estabilidade da moeda que tornou a especulação com terra -seu uso como reserva de valor e "hedge", em face das incertezas de uma economia corroída pela inflação- um mau negócio. Desde o início do plano, os capitais que se refugiavam em ativos como ouro, dólar ou terra buscam liquidez no real. Possuir estoque de terra passou a ser um mico.
Resultado: o preço da terra despencou aceleradamente, reduzindo as distorções num mercado sabidamente imperfeito. A mudança é tal que, em certos casos, financiar a compra de terras é mais vantajoso do que desapropriá-las.
Foi nesse contexto que se concluíram as negociações com o Banco Mundial e se iniciou a experiência do programa Cédula da Terra, cuja fórmula é simples: selecionar trabalhadores rurais sem terra organizados, entregar-lhes uma carta de crédito para que negociem a compra diretamente com os proprietários e, em seguida, financiar-lhes insumos, habitação e infra-estrutura -tudo de acordo com um projeto desenvolvido por eles próprios.
A experiência tem sido um sucesso. No Ceará, o preço médio do hectare é de R$ 180; na Bahia, de R$ 130. Isso permite que o preço da terra por família fique em torno de um terço da média nacional paga pelo Incra nas desapropriações. A consequência lógica disso, claro, foi a expansão do programa.
Foi criada no BNDES uma diretoria de desenvolvimento regional e fundiário, visando formular o novo programa e, em seguida, dar suporte operacional à sua realização. Surgiu, assim, o Banco da Terra, cujo "funding" foi em parte integralizado pelos valores das contas inativas recadastradas pelo BC.
O passo seguinte foi negociar com o senador Esperidião Amin um substitutivo que aproveitasse o melhor do seu projeto de criação de um fundo da terra, então tramitando no Senado, na concepção geral do Banco da Terra. Este foi aprovado com votação inédita: 58 votos a favor e nenhum contra, sem abstenções. Na Câmara, seu desempenho também foi expressivo: 351 votos a favor, 83 contra e três abstenções.
Com recursos provenientes do BC e do Fundo da Dívida Pública, o Banco da Terra terá como órgão gestor o gabinete do ministro extraordinário de Política Fundiária e, como operador, o BNDES, que atuará por meio de sua rede de agências: os bancos oficiais de primeira linha, federais e estaduais.
Sua clientela será composta por trabalhadores sem terra, meeiros, arrendatários, parceiros etc., além de minifundiários cujas terras não sejam suficientes para sustentar suas famílias. Todos terão 20 anos para pagar o financiamento, com até três anos de carência, a juros favorecidos. Poderão, ainda, optar pela equivalência-produto.
Orientado por um conselho integrado por representantes dos trabalhadores, das cooperativas e do governo, o novo fundo terá múltiplos impactos sobre a questão fundiária brasileira.
Ao operar diretamente com Estados e municípios, fundações e ONGs, ele permitirá efetiva descentralização, o que trará maior velocidade à reforma agrária. É um instrumento vocacionado para as regiões Sul e Sudeste e partes do Nordeste, onde a desapropriação encontra dificuldades, dada a existência, a esta altura residual, do latifúndio.
As críticas que afirmam que o fundo é o fim das desapropriações como instrumento de reforma agrária são totalmente improcedentes. Primeiro, as desapropriações continuarão sendo a ferramenta principal de nossa ação. Segundo, por meio do Banco da Terra, o poder público não estará comprando terras, mas financiando-as para interessados -e é preciso que estes existam para que o programa possa existir.
Por último, sobre a "denúncia" de que o financiamento não punirá o latifúndio, é bom lembrar que o mercado vem aceitando sofregamente o outrora purgativo Título da Dívida Agrária. Daí a crescente pressão por desapropriações que o Incra sofre por parte dos "com-muita-terra". Afinal, com o Real -que quebrou economicamente os especuladores de terra- e o novo ITR, a bíblica punição aos "terratenientes" já se deu. Ou está a caminho.

Raul Jungmann, 45, é ministro extraordinário de Política Fundiária. Foi presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de 1995 a 1996.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.