São Paulo, sexta, 30 de janeiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A ética e a legalidade das gravações


Não é agressão à lei a gravação de conversa própria, sem autorização do interlocutor, para posterior divulgação
LUIZ FRANCISCO FERNANDES DE SOUZA

Uma série de reportagens na mídia brasileira durante esta década levantou dúvidas na sociedade sobre os métodos utilizados pelos jornalistas. Conversas pessoais ou telefônicas foram gravadas por um dos participantes do diálogo sem que seu interlocutor soubesse.
Um dos casos mais notórios envolve o ex-ministro do Trabalho e da Previdência Social Antônio Rogério Magri. Em fevereiro de 1992, Magri foi acusado de ter cobrado uma propina de US$ 30 mil para facilitar a liberação de uma verba. Um interlocutor gravou uma conversa pessoal com o então ministro, sem avisá-lo. Os jornais publicaram.
Em maio de 97, a Folha publicou uma série de reportagens sobre a compra de votos de deputados a favor da emenda da reeleição. Uma pessoa denominada "Senhor X" gravou conversas pessoais com parlamentares, que revelavam ter sido comprados a mando de governos estaduais e do governo federal.
No início deste ano, o deputado Maurício Requião (PMDB-PR) divulgou o conteúdo de conversas telefônicas com funcionários do Ministério da Saúde. Nos diálogos, fica patente uma prática muito conhecida: o governo prefere liberar dinheiro do Orçamento para emendas de parlamentares que votem a favor das propostas do Planalto.
Para não ficar só no Brasil, o último escândalo envolvendo o presidente dos EUA, Bill Clinton, suscita a mesma discussão ética e legal que se dá por aqui a respeito dos métodos da mídia.
Não é conveniente entrar nas leis dos EUA. No caso do Brasil, ficam várias perguntas: 1) Uma pessoa pode gravar a própria conversa? 2) Contatos ou conversas pessoais, mediante carta, telefone ou instrumentos eletrônicos (Internet etc.), podem ser registrados e depois divulgados por um dos participantes, sem pedir autorização nem informar seu interlocutor? 3) Essa conduta é lícita sob o prisma ético e jurídico? A gravação serve como prova na Justiça? A resposta a todas essas questões é sim.
Do ponto de vista legal e jurídico, os tribunais pátrios e os melhores doutrinadores respondem que a gravação é lícita quando feita por um dos participantes da conversa. Se for refeita por uma terceira pessoa, sem conhecimento e consentimento de pelo menos um dos participantes, será ilícita e imoral -e mesmo criminosa, se for feita escuta telefônica sem ordem judicial.
Nos casos em que um dos participantes grava, ou autoriza alguém a fazê-lo, não restam dúvidas. O Supremo Tribunal Federal aceitou em setembro de 1993 a denúncia contra Magri. Há dezenas de outros casos resolvidos no STF.
Em instâncias inferiores, como o Superior Tribunal de Justiça, há ainda mais decisões nesse sentido -como no acórdão 4.503, de 14 de abril de 1997, em que o STJ considera legítima a gravação, feita por mãe solteira, de conversa com o pai da criança em processo de reconhecimento de paternidade.
Essas decisões tornam cristalino que não é agressão à lei a gravação de conversa própria, sem autorização do interlocutor, para posterior divulgação.
Gravar sons ou imagens constitui um direito daquele que participa do fato. Não há nesse ato, óbvio, invasão de privacidade, pela simples razão de que a pessoa que grava participa da conversa.
A aceitação das gravações como provas tem explicação na própria estrutura do processo. Sua finalidade principal é cognitiva: o juiz deve conhecer a verdade para depois julgar. A busca da verdade é a finalidade principal no direito, no jornalismo, nas ciências, na filosofia e em todos os ramos do conhecimento.
Os defensores dos direitos humanos se alegram quando cinegrafistas amadores aparecem com câmaras de vídeo registrando arbitrariedades. Foi o que aconteceu na lamentável agressão de PMs a transeuntes em Diadema (SP).
Da mesma forma, os gravadores de áudio devem ser usados. Não só em casos de legítima defesa, mas em qualquer situação na qual um cidadão perceba a possibilidade de produzir prova material de um ato ilícito que prejudique o conjunto da sociedade.
Só há um limite: fatos íntimos da personalidade -vida familiar, afetiva etc.- devem ser relativamente protegidos. Esse é o limite entre o terreno ético e o legal. Ainda assim, quando um corrupto discute, em meio a questões pessoais, contratos públicos de milhões de reais, compra de votos no Congresso ou venda de influência, não se pode defender tais ladrões de alto coturno com a alegação do direito à intimidade.
É claro que não seria eticamente correto alguém passar a gravar todas as suas conversas telefônicas para depois divulgá-las sem nenhum fato de relevância para a sociedade. Isso seria invasão de privacidade dos interlocutores dessa pessoa. Nesse caso, o cidadão cujos fatos pessoais fossem divulgados teria todo o direito de recorrer à Justiça.
A Constituição prevê, entre outras inviolabilidades, as da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. Mas todos esses direitos têm limites e devem ser interpretados de acordo com a teoria dos direitos subjetivos, que exige o uso conforme fins sociais e limitações.
A imprensa -o mesmo vale para a polícia e para cidadãos- pode tirar fotos de um crime ou filmá-lo. Fotos e filmes são aceitos como provas. Da mesma forma, é possível gravar conversa com outra pessoa ou entre duas pessoas que falam alto num local público, onde o que dizem pode ser ouvido por terceiros. Trata-se de um registro sonoro, tão bom quanto o da imagem.
Esses meios de prova devem ser cada vez mais usados contra a macrocriminalidade (criminosos de colarinho branco que obtêm milhões ou bilhões sem nem arriscar a vida, como faz um assaltante). Principalmente por jornalistas especializados em investigações.


Luiz Francisco Fernandes de Souza, 36, é procurador da República no Distrito Federal.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.