São Paulo, sábado, 30 de janeiro de 1999

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O governo vai conseguir manter a inflação sob controle?

SIM
Histeria oportunista e realidade

GESNER OLIVEIRA

As projeções catastrofistas em relação a uma inevitável volta da inflação com a mudança do regime cambial carecem de fundamentos teóricos e empíricos.
É natural que a alteração de um dos macropreços mais importantes, a taxa de câmbio, gere ruído no conjunto da economia. Bens e serviços comerciáveis (por exemplo, commodities) tendem a ficar mais caros em relação àqueles não-comerciáveis (como serviços). Nos livros, tais ajustes costumam ser automáticos. Na vida prática, a acomodação é marcada por oscilações e incertezas.
A própria estabilização da taxa de câmbio no seu novo nível de equilíbrio costuma ser precedida de variações significativas, superiores àquelas que terminam por prevalecer no médio prazo.
Daí não resulta a volta da inflação crônica que flagelou o país por meio século até o Plano Real.
Experiências recentes demonstram que depreciações significativas da moeda nacional não vêm necessariamente acompanhadas de inflação na mesma proporção. Na Coréia, o coeficiente de transmissão da mudança do câmbio à inflação foi relativamente baixo, em torno de 17%. Transplantado para o Brasil e supondo um novo câmbio de equilíbrio 30% superior à média de 1994-1998, ter-se-ia uma inflação em torno de 5%, inferior à média anual de crescimento dos preços em todas as décadas desde os anos 40.
As condições brasileiras atuais afastam os cenários inflacionários mais pessimistas por quatro razões principais. Em primeiro lugar, não há pressão de demanda capaz de sustentar reajustes excessivos de preços. O possível e desejável reaquecimento gradual via exportações não alteraria esse quadro ao reduzir os custos fixos unitários das empresas. É hora, portanto, de endurecer na negociação com os fornecedores; a era dos dos repasses automáticos de custos acabou.
Isso porque, e em segundo lugar, o Brasil está estruturalmente mais aberto. Apesar da eliminação dos excessos da liberalização comercial, da necessária implementação da defesa comercial e do encarecimento dos importados com o novo câmbio, os produtos estrangeiros continuarão a exercer pressão competitiva.
Diferentemente dos anos 80, quando a espiral de preços voltou após dez meses de Plano Cruzado, o consumidor experimentou uma cesta diversificada, o produtor já tem o nome, fax e endereço eletrônico do fornecedor estrangeiro e existe rede doméstica de distribuição dos importados.
Em terceiro, a conjuntura econômica mundial reforça a pressão concorrencial ao não apresentar alta generalizada de preços, como foi o caso dos choques do petróleo nos anos 70 e 80. Por fim, a desindexação dos últimos quatro anos impede uma magnificação dos efeitos da mudança cambial.
Tais considerações não subestimam os formidáveis desafios à frente, especialmente no tocante à prioridade do ajuste das contas públicas em todas as esferas de governo. Mas certamente desautorizam projeções infundadas de uma explosão inflacionária.
Diferentemente do passado, o Brasil dispõe hoje de instrumentos microeconômicos adequados que constituem complementos indispensáveis à austeridade macroeconômica na promoção da livre concorrência nos mercados. Isso é particularmente importante na atualidade, pois o quadro de incerteza alimenta o oportunismo de alguns agentes que dele se aproveitam para combinar preços com concorrentes em detrimento do consumidor e da sociedade.
Em contraste com o antigo CIP e os sucessivos fracassos no controle de preços do passado, a Lei Antitruste (lei 8.884), editada algumas semanas antes do Plano Real, oferece ao Cade e aos demais órgãos de defesa da concorrência os dispositivos legais para punir os abusos do poder econômico.
Isso vem sendo feito com transparência, firmeza, celeridade e estrita observância do devido processo legal. Sem nutrir a ilusão de que os problemas macroeconômicos serão resolvidos instantânea ou exclusivamente mediante o combate aos cartéis. Mas na certeza de que a defesa intransigente da livre concorrência é peça essencial das políticas públicas necessárias à retomada do crescimento com estabilidade.


Gesner Oliveira, 42, doutor em economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA), é presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), autarquia vinculada ao Ministério da Justiça, e professor-adjunto da FGV-SP. Foi secretário-adjunto de Política Econômica (governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso).




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