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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

As guerras que podemos ganhar

DONNA J. HRINAK

É claro que estamos em guerra. Mas existem diversos tipos de guerra. Na semana passada, entre páginas e mais páginas com a cobertura dos esforços da coalizão no Iraque, os jornais brasileiros publicaram um anúncio de página inteira que dizia: "Nossa guerra é contra a fome". Apesar de saber que é a outra guerra que está nas manchetes, gostaria de aproveitar para tratar da questão da fome e da pobreza, que preocupa tanto os EUA quanto o Brasil, e dos nossos esforços para resolvê-la, em termos individuais e hemisféricos.
Acabei de voltar de uma viagem de uma semana aos EUA, onde fiz duas palestras sobre os aspectos mais abrangentes da integração do hemisfério Ocidental. Minha intenção foi salientar aos ouvintes norte-americanos que, apesar dos eventos que estão ocorrendo do outro lado do mundo, este hemisfério continua a ser uma importante prioridade para o governo do meu país.
O compromisso dos EUA com a agenda hemisférica transcendeu as mudanças nas administrações em nossos países. Essa agenda foi definida inicialmente na Cúpula das Américas, em Miami, em 1994, e confirmada nas segunda e terceira cúpulas em Santiago, no Chile, e em Québec, no Canadá. As 34 democracias das Américas concordaram sobre quatro objetivos principais: consolidação da democracia; promoção da prosperidade econômica; garantia do desenvolvimento sustentável; e erradicação da pobreza.
Muito frequentemente, parece que o foco recai somente sobre os aspectos do livre comércio da nossa integração. Esse é um tópico particularmente proeminente no Brasil. Porém há muitas outras áreas que preocupam as pessoas deste hemisfério, inclusive no Brasil e nos EUA. A erradicação da pobreza está no topo da lista e pode-se avançar nessa meta por meio do processo de integração hemisférica.
Muitos brasileiros demonstram surpresa quando lhes digo que nós também temos problemas de pobreza e fome nos EUA. Em outubro passado, durante uma palestra na Câmara de Comércio Americana na Bahia, comecei a falar sobre uma cidade onde a pobreza aumentou em todos os setores nos últimos anos, ao ponto em que 1 em cada 5 residentes era considerado pobre e 1 em cada 3 crianças estava nessa categoria. Muitas das pessoas presentes ficaram surpresas quando eu disse: "Estou certa de que vocês já adivinharam que essa cidade é Washington".


Muitos brasileiros demonstram surpresa quando lhes digo que nós também temos problemas de pobreza e fome


Uma das palestras que fiz na semana passada foi no Conselho de Relações Exteriores de Chicago. Falei sobre o Programa Fome Zero, do presidente Lula, mas também salientei que a maior agência interna dos EUA de alívio da fome se localizava justamente em Chicago. Essa ONG, a America's Second Harvest (A Segunda Colheita da América), supervisiona a distribuição de cerca de 135 mil t de alimentos anualmente para 23,3 milhões de cidadãos americanos famintos em todos os 50 Estados, no Distrito de Columbia e em Porto Rico. A fome é um problema hemisférico.
Seja em Washington ou Chicago, São Paulo ou Rio de Janeiro, a pobreza continua a arruinar vidas. Em todos os EUA, o índice de pobreza aumentou em 2001 (para 11,5% da população), a renda média dos domicílios diminuiu (menos 2,2% em relação ao nível de 2000) e a desigualdade de renda aumentou. A taxa média de desemprego passou de 4,8%, em 2001, para 5,7% no ano passado.
Nosso embaixador nas organizações encarregadas da fome e alimentação da ONU, Tony Hall, argumenta que devemos ver a fome como causa da pobreza, não como um sintoma dela. As pessoas famintas não podem se dar ao luxo do "longo prazo", nós temos que atacar o problema da "insegurança alimentar" primeiro. Para sobreviver, elas precisam de comida hoje e a garantia de saber que poderão alimentar suas famílias amanhã. Somente então poderão se dedicar a questões de qualidade de vida como educação, novas técnicas agrícolas ou assistência de microcrédito.
Nos EUA, a Segunda Guerra Mundial expôs um número surpreendente de cidadãos que eram impedidos pela fome de se tornarem soldados capazes. Isso levou à criação dos programas de merenda escolar, cujo objetivo era fornecer pelo menos uma refeição sólida por dia a cada criança. A Lei Nacional da Merenda Escolar, assinada pelo presidente Harry Truman em 1946, estipulava "ser política do Congresso, como medida de segurança nacional, a salvaguarda da saúde e do bem-estar das crianças do país". Hoje esse programa federal de auxílio-alimentação funciona em mais de 99 mil escolas públicas e particulares sem fins lucrativos e em abrigos residenciais para crianças, fornecendo almoços a baixo custo ou grátis para mais de 25 milhões de crianças todos os dias letivos. Desde seu início, já foram servidas mais de 183 bilhões de refeições.
Temos ainda um longo caminho pela frente. O número de cidadãos dos EUA com "insegurança alimentar", que estavam com fome ou em risco de fome, permaneceu em 33,6 milhões em 2001, incluindo mais de 6 milhões de crianças, apesar dos grandes esforços de programas como o que mencionei acima. Sabemos que milhares de brasileiros estão lutando para escapar da pobreza e admiramos os esforços do presidente Lula e de seu governo para tentar ajudá-los. Essa guerra contra a fome é uma guerra que o Brasil e os EUA podem levar adiante e vencer, junto com os outros países do hemisfério.


Donna J. Hrinak, 52, é embaixadora dos EUA no Brasil. Foi embaixadora na Bolívia (1998-2000) e na República Dominicana (1994-1997).


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