São Paulo, terça-feira, 30 de março de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Três vezes acorrentado

A pseudo-ortodoxia que se convencionou chamar de neoliberalismo -o projeto de dar tudo pela confiança financeira na política macroeconômica, de insistir em reformas microeconômicas que nos façam mais parecidos com os países ricos e de aliviar a pobreza por meio de medidas compensatórias dirigidas só a pobres- malogrou espetacularmente na região do mundo onde mais se aplicou. A América Latina virou campo de devastação. Por que então lhe tem sido tão difícil mudar de rumo? É por conta do efeito combinado de três constrangimentos. Para não repetir no futuro o desastre que se abate sobre o governo do PT, temos de compreendê-los e de enfrentá-los.
O primeiro constrangimento é a disciplina do capital. Trata-se de equivalente funcional ao padrão-ouro do século 19: faz com que o nível de atividade dependa do nível de confiança. Baixa poupança privada e pública; vínculo tênue entre poupança e produção; endividamento produzido por farra fiscal e agravado por extorsão financeira; liberação para as idas e vindas do dinheiro -tudo converge para tornar governos nacionais reféns dos rentistas e dos bancos. Em vez de ser vista como problema, essa dependência passa a ser encarada como solução, porque impede os governos de embarcar em supostas aventuras populistas. O resultado é subordinar os interesses da economia real às exigências do capital financeiro. A maneira de romper esse constrangimento é exigir poupança compulsória progressivamente proporcional à renda de cada indivíduo, multiplicar meios de mobilizar poupança de longo prazo para investimento de longo prazo, promover renegociação ordenada da dívida pública e impor os controles cambiais que forem necessários para resguardar nossas reservas.
O segundo constrangimento é a confederação de privilégios que deixa o Estado à mercê de interesses privados e nega ao país o instrumento de transformação de que precisa. Só institucionalização de democracia de alta energia quebra esse constrangimento. Isso começa em enfraquecimento da influência eleitoral do dinheiro privado, em fortalecimento dos partidos políticos, em desfazimento dos oligopólios de mídia e em responsabilização dos governantes por organizações da sociedade civil, atuando em conjunto com procuradores e juízes.
O terceiro constrangimento -e o mais forte- são as ilusões da época. Nossa intelectualidade sintetizou, numa contemplação fatalista da "correlação de forças" no país e no mundo, o que sobrou do marxismo com o que aproveitou das ciências sociais americanas. Com isso, deu prestígio -já que não pôde dar clarividência- ao conformismo dos quadros dirigentes. O espírito que preside é o de Vichy: o fatalismo teórico justifica as atitudes neocoloniais que alimentam o ideário dominante em nossa vida pública. Supera-se esse constrangimento travando guerra dentro de cada ciência social e de cada profissão para ampliar a imaginação do possível, aprofundando o entendimento da realidade.
Da maneira de superar esses constrangimentos depende o futuro do Brasil. Somente força -intelectual, moral e política- que os combata como três expresses do mesmo mal terá como lutar pelo poder em nome do grande projeto de democratização de oportunidades e de capacitação de energias que é hoje o sonho e a tarefa da nação.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nessa coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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