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São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O homem e a pompa

RIO DE JANEIRO - Parece um animal em extinção, mas ainda existem alguns, muitos até, espalhados nas academias, universidades, câmaras, tribunais e até mesmo na mídia, que geralmente procura ser mais pedestre. Conheci espécimes raros dessa fauna, homens pomposos e brilhantes, mas ligeiramente defasados da vida real que levamos todos. Um deles, famoso jurista, ao fazer um discurso ou mesmo num bate-papo informal, destacava os parágrafos visualmente, a primeira letra da primeira palavra parecia sair de sua boca como uma maiúscula.
Outro era historiador, escondia as frases como se tivesse um cinzel a lascar imensos blocos de mármore Carrara, esculpindo Moisés e Pietás no ar que saía de sua formidável boca.
Mas nada se compara a um ex-senador que teve seus dias de glória na Velha República e, com a Revolução de 30, retirou-se da vida pública e começou a escrever um ensaio sobre as invasões holandesas. Tanto estudou, tanto pesquisou, tanto escreveu que descurou de sua mulher, ainda jovem, que, não tendo nada contra nem a favor das invasões holandesas, procurou distração mais consistente, tornando-se amante de um húngaro que vendia páprica falsificada e ganhava bom dinheiro.
Uma carta anônima alertou o ex-senador, que contratou um detetive e foi surpreender a adúltera num dos primitivos hotéis de alta rotatividade ao longo da Barra da Tijuca.
Armado o flagrante, já com a participação de testemunhas para o processo de adultério, o ex-senador penetrou na alcova onde os amantes foram surpreendidos na óbvia função que se exerce quando um homem nu deita na cama com uma mulher igualmente nua.
Durante anos, durante séculos, a cena terminaria com o pomposo corno dando um tiro na infiel, ou no amante dela, em casos mais extremos, nos dois pecadores. Mas o homem, entre o tiro e a pompa, preferiu ficar com a pompa. Com solenidade, dedo em riste, limitou-se a recriminá-la, pronunciando pausadamente o anátema definitivo:
- Atrevida barregã!


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