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São Paulo, quarta-feira, 30 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Dentro de casa e dentro da lei

ÂMBAR DE BARROS, ARMAND PEREIRA e HELIO MATTAR

O combate ao trabalho infantil tem sido, há alguns anos, uma bandeira no país. Segundo dados da PNAD 2001, desde o princípio da década de 90, quando se deram as primeiras investidas pela sua erradicação, até 2001, quase 3 milhões de crianças foram retiradas das mais diversas atividades, contabilizando-se importantes vitórias entre setores de risco, como a produção de calçados, carvão e fumo e as lavouras de cana-de-açúcar e laranja.
O trabalho infantil doméstico é um capítulo à parte. Ele não é tão visível como o dos pequenos carvoeiros nem tão insalubre como o dos meninos colhedores de fumo, mas é também nocivo.
O quadro de pobreza e exclusão social do país contribui para que mais de 3 milhões de crianças e adolescentes abaixo da idade legal permitida estejam trabalhando e quase 500 mil meninas e adolescentes estejam no trabalho doméstico. Pesquisas revelam que 96% do trabalho infantil doméstico no Brasil é feito por meninas e adolescentes, sendo que 44% são meninas de 12 a 15 anos, e quase um terço começou a trabalhar entre os cinco e os 11 anos de idade.
As meninas domésticas não estão nas fábricas e nas lavouras. Estão invisíveis, dentro das casas. E quase todo mundo considera isso normal. Até a maioria dos seus pais acredita que é justo que trabalhem. Para mudar essa mentalidade, a Fundação Abrinq, a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância) estão lançando uma campanha na mídia com o mote "Trabalho infantil doméstico: não leve essa idéia pra dentro da sua casa".
Realizada voluntariamente pela McCann-Erickson, a campanha mostra como o trabalho infantil doméstico fere os direitos garantidos pela Constituição brasileira e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e empobrece, envelhece e embrutece as crianças.
Esse certamente não é o ponto de vista de quem emprega, acreditando, de boa-fé ou por conveniência, que está ajudando uma família pobre. Mas os estragos são inquestionáveis. Embora 96% das meninas trabalhadoras domésticas saibam ler e escrever e 74% estejam estudando, quanto maior o tempo no trabalho, maior é o índice de atraso escolar.
Existem cerca de 3.000 meninas de cinco a nove anos que trabalham até 21 horas por semana, numa jornada que aumenta com a idade: meninas de dez a 14 anos chegam a trabalhar 36 horas semanais, e aos 15 trabalham mais do que as domésticas adultas! Os estudos mostram que 36% das meninas envolvidas com trabalho doméstico no país afirmam ter sofrido algum acidente de trabalho ou apresentam algum sintoma relacionado a ele. Queimaduras, cortes com facas e acidentes com produtos químicos estão entre os mais comuns.


O trabalho não pode ser mais importante do que o estudo. Criança deve ser prioridade absoluta, sempre


Depoimentos de meninas trabalhadoras registram abusos e violações de direitos por parte das famílias que as empregam, que vão de agressões verbais e físicas até assédio sexual. As meninas constróem uma imagem distorcida de si mesmas, de alguém com pouco valor e poucos direitos. A separação precoce de seu ambiente social impede que construam sua identidade e tenham seus vínculos afetivos fortalecidos, junto a sua família e amigos. O ambiente doméstico nem sequer permite à trabalhadora uma condição de aprendizagem. Por isso, o trabalho doméstico não se enquadra na Lei de Aprendizagem, sendo permitido só a partir dos 16 anos.
Nesse caso, muitos esquecem que, além das garantias de um adulto, as trabalhadoras adolescentes devem ter as previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e nas Convenções 138 e 182 da OIT: registro em carteira, repouso remunerado, férias, tempo de trabalho compatível com o de estudo, convivência familiar e recreação asseguradas, o direito de não realizar atividades proibidas na lista das piores formas de trabalho infantil, o direito de não realizar trabalho noturno e, sobretudo, de serem cuidadas e protegidas no trabalho.
Ao serem transformados em força de trabalho, crianças e adolescentes deixam de ser tratados como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. O trabalho infantil não é compatível com a infância, pois fere os seus principais direitos. E o trabalho infantil doméstico frequentemente fere todos os direitos: à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; à profissionalização e à proteção no trabalho -além de expor as meninas a situações de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A realidade não pode se contrapor às leis. Superar a pobreza não pode vir antes do desenvolvimento sadio das crianças. O trabalho não pode ser mais importante do que o estudo. Criança deve ser prioridade absoluta, sempre.


Âmbar de Barros, 43, é presidente da Andi.
Armand Pereira, 51, é representante da OIT no Brasil.
Helio Mattar, 56, é diretor-presidente da Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente e do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente.


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