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Ciência como superstição
OTAVIO FRIAS FILHO
O avanço do conhecimento é normalmente concebido como um processo linear, inexorável, em que as
descobertas são aclamadas tão logo
venham à luz e as novas teorias se impõem com base na evidência racional.
Afastados os entraves da religião desde o século 17, o conhecimento vem
florescendo de maneira livre, contínua.
Um pequeno livro agora publicado
no Brasil mostra que nem sempre é
assim. Escrito na juventude (1924) pelo romancista francês Louis-Ferdinand Céline, "A Vida e a Obra de
Semmelweis" relata aquele que é um
dos episódios mais lúgubres na crônica da estupidez humana e talvez a pior
mancha na história da medicina.
Ignác Semmelweis foi o descobridor
da assepsia. Médico húngaro trabalhando num hospital de Viena, ele
constatou que a mortalidade entre as
parturientes, então um verdadeiro flagelo, era diferente nas duas alas da
maternidade. Numa delas, os procedimentos eram realizados por parteiras;
na outra, por estudantes.
Não se conhecia a ação dos microorganismos e a febre puerperal era atribuída às causas mais estapafúrdias.
Em 1846, um colega de Semmelweis se
cortou enquanto dissecava um cadáver, contraiu uma infecção e morreu.
Semmelweis imaginou que o contágio
estivesse associado à manipulação de
tecidos nas aulas de anatomia.
Mandou instalar pias na ala dos estudantes e tornou obrigatório lavar as
mãos com cloreto de cal. No mês seguinte, a mortalidade entre as mulheres caiu para 0,2%! Mais incrível é o
que aconteceu em seguida. Os dados
de Semmelweis foram desmentidos,
ele foi exonerado e as pias -atribuídas à superstição- arrancadas.
Nos dez anos seguintes, Semmelweis
tentou alertar médicos em toda a Europa, sem sucesso. A Academia de Paris rejeitou seu método em 1858. Semmelweis enlouqueceu e foi internado.
Em 1865, invadiu uma sala de dissecação, feriu-se com o bisturi e morreu
infeccionado. Pouco depois, Pasteur
provou que ele estava certo.
Para o leitor da nossa época, o interessante é que Semmelweis foi vítima
de um obscurantismo científico. Como nota o tradutor italiano no prefácio agregado à edição brasileira, qualquer xamã de alguma cultura dita primitiva isolaria cadáveres e úteros por
meio de rituais de purificação. No
científico século 19, isso parecia crendice.
O livro é a tese de Céline na faculdade de medicina, antes de ele se tornar
um dos maiores escritores do século
20, apesar da fama maculada pela adesão ao nazismo e à propaganda anti-semita. Há um tom irritante na prosa descabelada desse panfleto juvenil,
nas suas ênfases sempre retumbantes,
na premeditação do seu catastrofismo.
Mesmo assim, Céline transforma
Semmelweis num herói de tragédia
clássica e erige, a partir do relato vertiginoso de sua vida, um monumento
impressionante à imbecilidade. Ainda
atordoados pela facilidade com que a
medicina, apesar de seus enormes
progressos, leva da vida à morte, o livro inspira horror e fascínio.
A Vida e a Obra de Semmelweis,
Louis-Ferdinand Céline. Tradução de Rosa
Freire D'Aguiar. Companhia das Letras, 147
págs.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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