São Paulo, quinta, 30 de abril de 1998

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Ciência como superstição

OTAVIO FRIAS FILHO

O avanço do conhecimento é normalmente concebido como um processo linear, inexorável, em que as descobertas são aclamadas tão logo venham à luz e as novas teorias se impõem com base na evidência racional. Afastados os entraves da religião desde o século 17, o conhecimento vem florescendo de maneira livre, contínua.
Um pequeno livro agora publicado no Brasil mostra que nem sempre é assim. Escrito na juventude (1924) pelo romancista francês Louis-Ferdinand Céline, "A Vida e a Obra de Semmelweis" relata aquele que é um dos episódios mais lúgubres na crônica da estupidez humana e talvez a pior mancha na história da medicina.
Ignác Semmelweis foi o descobridor da assepsia. Médico húngaro trabalhando num hospital de Viena, ele constatou que a mortalidade entre as parturientes, então um verdadeiro flagelo, era diferente nas duas alas da maternidade. Numa delas, os procedimentos eram realizados por parteiras; na outra, por estudantes.
Não se conhecia a ação dos microorganismos e a febre puerperal era atribuída às causas mais estapafúrdias. Em 1846, um colega de Semmelweis se cortou enquanto dissecava um cadáver, contraiu uma infecção e morreu. Semmelweis imaginou que o contágio estivesse associado à manipulação de tecidos nas aulas de anatomia.
Mandou instalar pias na ala dos estudantes e tornou obrigatório lavar as mãos com cloreto de cal. No mês seguinte, a mortalidade entre as mulheres caiu para 0,2%! Mais incrível é o que aconteceu em seguida. Os dados de Semmelweis foram desmentidos, ele foi exonerado e as pias -atribuídas à superstição- arrancadas.
Nos dez anos seguintes, Semmelweis tentou alertar médicos em toda a Europa, sem sucesso. A Academia de Paris rejeitou seu método em 1858. Semmelweis enlouqueceu e foi internado. Em 1865, invadiu uma sala de dissecação, feriu-se com o bisturi e morreu infeccionado. Pouco depois, Pasteur provou que ele estava certo.
Para o leitor da nossa época, o interessante é que Semmelweis foi vítima de um obscurantismo científico. Como nota o tradutor italiano no prefácio agregado à edição brasileira, qualquer xamã de alguma cultura dita primitiva isolaria cadáveres e úteros por meio de rituais de purificação. No científico século 19, isso parecia crendice.
O livro é a tese de Céline na faculdade de medicina, antes de ele se tornar um dos maiores escritores do século 20, apesar da fama maculada pela adesão ao nazismo e à propaganda anti-semita. Há um tom irritante na prosa descabelada desse panfleto juvenil, nas suas ênfases sempre retumbantes, na premeditação do seu catastrofismo.
Mesmo assim, Céline transforma Semmelweis num herói de tragédia clássica e erige, a partir do relato vertiginoso de sua vida, um monumento impressionante à imbecilidade. Ainda atordoados pela facilidade com que a medicina, apesar de seus enormes progressos, leva da vida à morte, o livro inspira horror e fascínio.

A Vida e a Obra de Semmelweis, Louis-Ferdinand Céline. Tradução de Rosa Freire D'Aguiar. Companhia das Letras, 147 págs.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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