São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A festa do corpo

FREI BETTO

Hoje a Igreja Católica celebra a festa do Corpo de Cristo. Para nós, cristãos, o corpo de Cristo impregna a vivência espiritual de consistente materialidade. Não cremos num deus abstrato, como aquele que a idolatria do mercado venera como senhor de uma liberdade que, na ânsia de lucros, sacrifica a justiça. No esteio da fé hebraica, cremos em fatos históricos datáveis, sobre os quais se assenta a liturgia cristã.
No centro da historicidade emerge a figura de Jesus de Nazaré. Ele impregna o nosso (in) consciente coletivo. Sua encarnação introduziu a presença viva de Deus na condição humana. Nesse corpo de carne, de alegrias e dores, Deus quis resgatar toda a sua criação. Tinha razão Hélio Pellegrino ao insistir em que não há nada mais radical do que "proclamar a ressurreição da carne". No entanto quantos persistem no caminho inverso, num platônico esforço de exaltar o espírito em detrimento do corpo!
Aos olhos da fé, o corpo de Cristo vive entre nós no pão eucarístico, que representa tudo isso que de fato traz vida às pessoas: da lei que assegura a terra aos agricultores ao gesto de carinho que reinstaura o amor. Se não há direito à terra nem ternura, o corpo é negado, vilipendiado, rejeitado. Mas nós também somos corpo de Cristo, na comunhão da fé e na unidade eclesial; e somos moradas vivas de seu espírito pelo sacramento do batismo.
Teilhard de Chardin, enfatizando a teologia paulina, via toda a criação, das partículas atômicas ao movimento das galáxias, como corpo de Cristo em expansão cósmica. No entanto quantos tabus e preconceitos ainda cercam o corpo! Mesmo em escolas consideradas modernas, o tema não ultrapassa o enfoque biológico. Sexualidade e afetividade permanecem temas clandestinos. Reforça-se, assim, a ideologia patriarcal de submissão do corpo feminino ao domínio masculino, aprofundando os dualismos que emanam do mito de que os papéis feminino e masculino estariam definidos segundo suas respectivas naturezas.
Ora, foram as definições supra-estruturais que surgiram a posteriori para legitimar a apropriação do corpo da mulher pelo homem, levando-a a se pensar como ser-no-mundo em função não de si mesma, mas do outro sexo, a ponto de ela encarar o seu corpo como algo estranho, cujo funcionamento só seria adequadamente controlado por paradigmas machistas.
Essa clandestinização do corpo como algo cercado de tabus e preconceitos é que tanto reforça seu exibicionismo pornográfico. Basta observar uma banca de revistas! Nas capas, corpos como pratos de um cardápio ilustrado. Porém aqueles mesmos modelos sabem que o preço do sucesso não paga o valor da vida. Ao contrário, sonega o que há de mais vital: a subjetividade, o recôndito do coração, o direito de se inter-relacionar como pessoa, sem se ver reduzido a mero objeto de consumo.
Malha-se o corpo com uma dedicação nem sempre igualável à malhação do espírito. Menos cultura e mais vitaminas! Morreremos todos saudáveis e esbeltos.


Todo o universo é o nosso corpo. Em nossas células, moléculas e átomos está gravada a história de 15 bilhões de anos


Nunca se falou tanto em corpo como neste século que tanto o profana. Nas fábricas, o corpo do operário atrela-se ao ritmo da máquina, como Chaplin critica em "Tempos Modernos". Por que os agricultores, que fazem tanto trabalhos físicos, não possuem corpos atléticos? Seus corpos, em geral, são duros, rígidos, contraídos, porque usados apenas como ferramentas, e não como expressão do ser que somos nessa indivisível unidade corpo-espírito. Felizmente os movimentos feministas atuam em prol do resgate do corpo, influindo inclusive em movimentos espirituais que redescobrem o corpo como forma de oração.
A respiração, a postura, a dança são importantes na oração, conforme atestam as tradições bíblica e litúrgica. A oração que não integra o corpo e toda a realidade circundante, histórica e natural, tende a cair no narcisismo espiritualista que faz preceder o bem-estar do orante à graça divina, que é tanto mais eficaz quanto mais a pessoa se entrega e se integra ao corpo de Cristo, que se prolonga no sofrimento do oprimido e se dilata na evolução do universo.
Aliás, todo o universo é o nosso corpo. Em nossas células, moléculas e átomos está gravada a história de 15 bilhões de anos, que vão do Big Bang às pessoas que somos. Em cada um de nós, o universo adquire rosto e consciência. Personaliza-se. E, em nossa mente e em nossos olhos, contempla sua própria harmonia. Por isso chama-se cosmo, vocábulo que deriva da mesma raiz grega de cosmético -que imprime beleza.


Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 57, frade dominicano, é escritor e assessor de movimentos pastorais e sociais. É autor, entre outras obras, do romance "Hotel Brasil" (Ática).



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