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TENDÊNCIAS/DEBATES
A festa do corpo
FREI BETTO
Hoje a Igreja Católica celebra a
festa do Corpo de Cristo. Para nós,
cristãos, o corpo de Cristo impregna a
vivência espiritual de consistente materialidade. Não cremos num deus abstrato, como aquele que a idolatria do mercado venera como senhor de uma liberdade que, na ânsia de lucros, sacrifica a
justiça. No esteio da fé hebraica, cremos
em fatos históricos datáveis, sobre os
quais se assenta a liturgia cristã.
No centro da historicidade emerge a
figura de Jesus de Nazaré. Ele impregna
o nosso (in) consciente coletivo. Sua encarnação introduziu a presença viva de
Deus na condição humana. Nesse corpo
de carne, de alegrias e dores, Deus quis
resgatar toda a sua criação. Tinha razão
Hélio Pellegrino ao insistir em que não
há nada mais radical do que "proclamar
a ressurreição da carne". No entanto
quantos persistem no caminho inverso,
num platônico esforço de exaltar o espírito em detrimento do corpo!
Aos olhos da fé, o corpo de Cristo vive
entre nós no pão eucarístico, que representa tudo isso que de fato traz vida às
pessoas: da lei que assegura a terra aos
agricultores ao gesto de carinho que
reinstaura o amor. Se não há direito à
terra nem ternura, o corpo é negado, vilipendiado, rejeitado. Mas nós também
somos corpo de Cristo, na comunhão
da fé e na unidade eclesial; e somos moradas vivas de seu espírito pelo sacramento do batismo.
Teilhard de Chardin, enfatizando a
teologia paulina, via toda a criação, das
partículas atômicas ao movimento das
galáxias, como corpo de Cristo em expansão cósmica. No entanto quantos
tabus e preconceitos ainda cercam o
corpo! Mesmo em escolas consideradas
modernas, o tema não ultrapassa o enfoque biológico. Sexualidade e afetividade permanecem temas clandestinos.
Reforça-se, assim, a ideologia patriarcal
de submissão do corpo feminino ao domínio masculino, aprofundando os
dualismos que emanam do mito de que
os papéis feminino e masculino estariam definidos segundo suas respectivas naturezas.
Ora, foram as definições supra-estruturais que surgiram a posteriori para legitimar a apropriação do corpo da mulher pelo homem, levando-a a se pensar
como ser-no-mundo em função não de
si mesma, mas do outro sexo, a ponto
de ela encarar o seu corpo como algo estranho, cujo funcionamento só seria
adequadamente controlado por paradigmas machistas.
Essa clandestinização do corpo como
algo cercado de tabus e preconceitos é
que tanto reforça seu exibicionismo
pornográfico. Basta observar uma banca de revistas! Nas capas, corpos como
pratos de um cardápio ilustrado. Porém
aqueles mesmos modelos sabem que o
preço do sucesso não paga o valor da vida. Ao contrário, sonega o que há de
mais vital: a subjetividade, o recôndito
do coração, o direito de se inter-relacionar como pessoa, sem se ver reduzido a
mero objeto de consumo.
Malha-se o corpo com uma dedicação
nem sempre igualável à malhação do espírito. Menos cultura e mais vitaminas!
Morreremos todos saudáveis e esbeltos.
Todo o universo é o nosso corpo. Em nossas células, moléculas e átomos está gravada a história de 15 bilhões de anos
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Nunca se falou tanto em corpo como
neste século que tanto o profana. Nas fábricas, o corpo do operário atrela-se ao
ritmo da máquina, como Chaplin critica em "Tempos Modernos". Por que os
agricultores, que fazem tanto trabalhos
físicos, não possuem corpos atléticos?
Seus corpos, em geral, são duros, rígidos, contraídos, porque usados apenas
como ferramentas, e não como expressão do ser que somos nessa indivisível
unidade corpo-espírito. Felizmente os
movimentos feministas atuam em prol
do resgate do corpo, influindo inclusive
em movimentos espirituais que redescobrem o corpo como forma de oração.
A respiração, a postura, a dança são
importantes na oração, conforme atestam as tradições bíblica e litúrgica. A
oração que não integra o corpo e toda a
realidade circundante, histórica e natural, tende a cair no narcisismo espiritualista que faz preceder o bem-estar do
orante à graça divina, que é tanto mais
eficaz quanto mais a pessoa se entrega e
se integra ao corpo de Cristo, que se
prolonga no sofrimento do oprimido e
se dilata na evolução do universo.
Aliás, todo o universo é o nosso corpo.
Em nossas células, moléculas e átomos
está gravada a história de 15 bilhões de
anos, que vão do Big Bang às pessoas
que somos. Em cada um de nós, o universo adquire rosto e consciência. Personaliza-se. E, em nossa mente e em
nossos olhos, contempla sua própria
harmonia. Por isso chama-se cosmo,
vocábulo que deriva da mesma raiz grega de cosmético -que imprime beleza.
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto,
57, frade dominicano, é escritor e assessor de
movimentos pastorais e sociais. É autor, entre outras obras, do romance "Hotel Brasil" (Ática).
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