São Paulo, quinta-feira, 30 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O mito do progresso

GILBERTO DUPAS

Em meio a um enorme avanço da parafernália eletrônica e dos maravilhosos produtos da tecnologia, uma mídia global a serviço do consumo tenta provar que somos felizes cidadãos imersos numa era de imenso progresso.
No entanto o século 20 foi o mais violento da história registrada. O número de mortes causadas por guerras durante esse período -ou associadas a elas-, para Eric Hobsbawm, é estimado em 187 milhões. A partir de 1914, as guerras foram quase ininterruptas, matando sem distinção combatentes e, progressivamente, não-combatentes. Na Primeira Guerra Mundial, 5% dos mortos foram civis. Na Segunda Guerra, foram mais de 65%.
Atualmente, com tropas de especialistas operando armas de alta precisão, esse número é ainda maior. O sofrimento dos civis é multiplicado pelo drama dos refugiados. Duas semanas de guerra entre a Índia e o Paquistão, pela independência de Bangladesh, em 1971, produziram 10 milhões deles. As lutas entre unidades armadas na África nos anos 90 geraram outros 7 milhões.
O mesmo Hobsbawm acha revelador como as resoluções das convenções de Haia de 1899 e 1907 -distinções entre combatentes e população civil e a definição de guerras como conflitos entre Estados- foram progressivamente esquecidas conforme o século avançava. As fronteiras entre guerra e paz perderam nitidez. A Segunda Guerra começou sem uma declaração de guerra e terminou sem um claro tratado de paz, seguindo-se uma Guerra Fria, que durou 40 anos. Nos anos recentes, o termo "guerra" ampliou-se: "guerra contra a máfia", "guerra contra a droga" e, agora, "guerra contra o terror".
A globalização avançou em quase todos os campos, exceto na ausência de uma autoridade regulatória capaz de arbitrar disputas e garantir uma distribuição menos injusta dos recursos globais. À medida que os bolsões de miséria se consolidaram, vários Estados nacionais perderam a legitimidade social do monopólio da violência, cedendo-o a organizações clandestinas e criminosas.
O conceito de guerra se banalizou. Nas periferias de metrópoles mundiais, como Rio de Janeiro e São Paulo, morrem atualmente tantos civis quanto em guerras localizadas. Para cada jovem europeu assassinado, perecem 200 cariocas. Em São Paulo, 62% das mortes de jovens são por homicídio e, muitas vezes, em conexão com a droga.
A escalada é geral. No Brasil, enquanto o número de homicídios por habitante de 1991 para cá cresceu 14% (somos o segundo país mais violento do mundo, apenas atrás da Colômbia), entre os jovens esses homicídios evoluíram 48% (só perdemos para Colômbia e Porto Rico). Mas a escalada da brutalidade não ocorre só entre nós. Fator decisivo para a surpreendente votação de Le Pen nas eleições francesas foi o crescimento dos crimes violentos na França, que, segundo Alain Bauer, professor de criminologia da Sorbonne, passaram de 100 mil para 400 mil nos últimos sete anos.


Quando as mensagens explícitas ou subliminares associam afeto e sucesso a produtos, quem pode comprar o faz


Recentes ensaios publicados pela "Revista da Cepal" mostram que, nas décadas de 80 e 90, os pobres latino-americanos perderam ainda mais renda, apesar de ligeira recuperação no último decênio. Rubén Katzman lembra que, tendo incorporado expectativas de cidadania plena e aumento de consumo através do trabalho, os pobres urbanos viram-se seduzidos por uma sociedade moderna da qual só puderam participar simbolicamente; e viveram o aumento do desemprego e da informalidade.
A mídia global -que hipervaloriza o consumo supérfluo e a performance- está a serviço de uma sociedade que permite a um número cada vez mais restrito de indivíduos alcançar o sucesso. Por outro lado, o crescimento da exclusão, da precariedade e da concentração ostensiva de renda também tem muito a ver com os novos padrões de violência. Igualmente, há fortes indícios de que a indústria cultural global, gerada pela competição exacerbada e balizada pelos padrões hollywoodianos, é causa importante dos comportamentos agressivos.
Pesquisadores da Universidade de Columbia, em estudo divulgado pela "Science", após acompanharem grupo significativo de crianças do Estado de Nova York, constataram nítido vínculo entre seus comportamentos violentos e tempo de exposição à TV. Enquanto apenas 5% dessas crianças -que viam menos de uma hora de programação diária- praticaram mais tarde atos agressivos, esse número era de 23% para quem assistia de 1 a 3 horas e de 29% para quem via mais de três horas.
Os pesquisadores constataram, também, que uma hora de programação típica de TV norte-americana contém de 3 a 5 atos violentos. Já o sociólogo Monique Dagnaud, antigo membro do Conselho Superior de Audiovisual da França, recomendou ao seu governo muito cuidado com os efeitos da propaganda em crianças de 4 a 12 anos, fortemente influenciáveis. Na França, nessa idade, elas assistem, em média, a quase três horas de TV por dia.
É preciso considerar que a criança muito pobre é exposta à mesma propaganda que a criança rica. E quando as mensagens explícitas ou subliminares associam afeto e sucesso a produtos, quem pode comprar o faz; quem não pode, acumula frustrações; ou, em casos extremos, pratica a violência. Pesquisas na Febem paulista indicam um número expressivo de detidos por roubo de tênis ou camiseta com grife.
Em meio a TVs digitais, celulares, sensores automáticos e mágicas da eletrônica e da computação, estamos construindo um mundo cada vez mais violento e cruel. Não parece essencial revermos o que se entende por progresso?


Gilberto Dupas, 59, economista, é coordenador-geral do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional da USP), presidente do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais e autor, entre outras obras, de "Hegemonia, Estado e Governabilidade" (editora Senac).



Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Frei Betto: A festa do corpo

Próximo Texto:
Painel do Leitor

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.